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Pequenos segredos ou significados linguísticos que nem todo olhar descobre

O idioma, por ser versátil, tem muitas facetas. Isso é muito bom. Um vocábulo teria um significado, mas o contexto revela o outro lado (oculto?) que o olhar comum teria dificuldade para descobrir.

Este comentário pode apresentar informações interessantes. O uso regional de um termo deve ser visto sob prisma diferente, que, talvez, nem todos conheçam.

Os verbos calçar e pavimentar são sinônimos em se tratando do ‘calçamento’ de ruas. Na frase ‘O menino calça um tênis novo’, o verbo não pode ser sinônimo de ‘pavimenta’. Isso é lógico! Mas no momento em que os termos se substituem – calçar, pavimentar, empedrar, cobrir de revestimento, revestir (rua, praça, estrada) -, um deles pode ser sinônimo de ‘calcetar’. Diz o homem comum que foi feito ‘o cacetamento’, como se fosse a pavimentação. Ficaria difícil para ele usar o correto, ‘calcetamento‘? Essa linguagem não é comum a todos. CAL-CE-TA-MEN-TO? O cidadão estranha. Inclusive, há um profissional chamado ‘calceteiro’, o operário que faz empedramento de estradas, ruas, praças. ‘Qual a sua profissão?’ ‘Calceteiro’. O que é isso? Alguém vai rir. (Faça o teste.)

Pereba é uma pústula seca, ferida com casca, do tupi ‘pereb’. Na linguagem chula, pereba é o imprestável. No futebol, jogador ruim. Quem sabe outro significado?

Há anos, viajando em ônibus interestadual, uma senhora estava radiante falando com a amiga que teria comprado uma antena ‘paranoica’. Curioso isso. Certamente, não sabia o que é paranoia, nem distinguia ‘parabólica’, que vem de ‘parábola’, não com o sentido de ‘mensagem cristã’. Foi antes de surgir um programa televisivo com o título exótico ‘Antena Paranoica’.

Alguém distingue ‘produto manipulado’ (excelente para combater males), mas poderá não entender ‘cidadão manipulado’, manietado por um sistema que conduz o simplório a uma arataca ou a ser escravo social. No campo dos homônimos e parônimos, é intenso o mau uso de ‘conserto’ confundido com ‘concerto’: a placa continha a mensagem ‘concerto de celulares‘. Erro de grafia? Erro de Português? Não! É que, com tanta modernidade, iria haver grande contingente de celulares conectados tocando as mesmas músicas clássicas em praça pública. Isso é ‘concerto de celulares’. Mas quem escreve descobre isso? O erro, se consagrado, pode tornar-se um verbete, a ser registrado, futuramente, no léxico.

Minha mãe me dava uma dose diária de mezinha feita com hortelã (graúdo) para sarar a gripe. Ela tinha enorme dose de paciência para fazer o chá milagroso. O ruim, hoje, é o cidadão dizer que vai à feira comprar coentro, cebolinha e ‘hortelão’. O cuidador de horta, agora, é um produto adquirido em feira-livre, pela simples barganha de alguns centavos de Real. Hortelã é planta medicinal; hortelão é aquele que cuida de uma horta. Familiaridade gráfica: hortênsia (arbusto ornamental, que seria de origem chinesa). Hortência, usado como antropônimo, é corruptela de grafia do nome da planta.

Levou um pé na bunda. Saiu catando cavaco. Vá lamber sabão. Vai-te catar, malandro! Falou tanta coisa, que ficou martelando na cabeça do filho. (Não busquemos explicações para essas frases regionalistas. Basta que entendamos a mensagem. A atenção é primordial quando estivermos em terra estranha e nunca falemos ‘O povo daqui fala muito errado’.) Se é possível que se entenda ‘tirar o peso da consciência’, fácil seria ingerir ‘um homem recalcado’ sem confundir com ‘um terreno recalcado’.

O sufixo ‘ado‘, tão comum no dia a dia – amado, doirado, pisoteado -, da mesma nuança de ‘ido‘ – ferido, engolido, retido -, tem variado aspecto semântico, tomando rumo diverso a cada momento de uso.

E estes? Que diacho, menina! O lobacho acabou de devorar uma presa. A papelada do escritório. A papelada cometida por corruptores e corruptos.

Paralelamente a esses casos, o uso metafórico de vocábulos é excelente prática da escrita e da fala. Leia muito e pratique esse estilo com voracidade.

O cara chegou pregado do trabalho. Cristo foi pregado na Cruz para nos salvar (no Gólgota ou Calvário).

Se houver erro de interpretação, a culpa não recai em morfemas (prefixos, sufixos infixos); talvez, no desconhecimento linguístico. Certo é que não nos podemos ater à simples grafia do vocábulo. Isso pode ser um engodo. Vale, como sabemos, o contexto, e a nossa perspicácia tem que ser volumosa, rica como a água que desce da cachoeira. Ali, está o véu da noiva. Linda. Aliás, ambas. As três visões – a da cachoeira, a da noiva e a sua, que enxerga bem. Fica dito.

Pausa: jovem advogado, leitor assíduo de bons artigos e de obras nacionais de elevado conteúdo, diz que o poeta paulista é ‘adjetivo’ e o baiano, ‘substantivo’. Questiono-o: “E o mineiro onde fica?” Apenas, sorri. Trata-se de excelente observação, assim como o Código Civil (seco) é substantivo, e o Processual Civil, adjetivo. Talvez, não inclua seu olhar nesse outeiro um pouco distante. Como é paulistano, lembrei-lhe o poema Juca Mulato (1917), de Menotti del Picchia (pronúncia aproximada: ‘píquia’), de fato, um paulista ‘ultra-adjetivo’. Versos: “É macabro o pardieiro./ Junto à porta cochila o negro feiticeiro./ A pele molambenta o esqueleto disfarça./ Há uma faísca má nessa pupila garça/ quieta, dormente como as águas estagnadas. (…) – Olha, Roque, você me vai dar um remédio./ Eu quero me curar do mal que me atormenta.” In A mandinga, Texto V.

Disse que não o conhecia. Que pena!

 

 

João Carlos de Oliveira

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