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“Cumpadi, coloca no alfroje”, expressão sertaneja, riqueza regional

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral’, parágrafo inicial de ‘O homem’ in Os Sertões, do paulista Euclides da Cunha, narrando o conflito Guerra de Canudos, no Sertão baiano.

O sertanejo, mesmo sob o Sol ardente, revela esperança e sorri. Mesmo sofrido, é simpático e não desiste da busca pela vida digna. Corajoso, convive com a seca, e ama sua terra. Conhece o sofrer do vizinho, e o ajuda; vive o padecer dos animais, e continua a luta sob o olhar da decência; quem nele confia tem em troca o exemplo de cidadão que, jamais, descumpre suas obrigações.

O objetivo é comentar palavras e expressões do sertanejo, mas ligeiras linhas que o descrevem não fazem mal a ninguém. (Sou um deles, nascido na fazenda Várzea Comprida, distrito de Serrote (hoje município de Serrolândia), em Jacobina, BA.)

Falante ou tímido, usa termos da linguagem oral aprendida de pai para filho. Pode ser pouco audível, mas é espontâneo: “Doutô, venho fazê um inzame”. Pensativo, “Isso é um dizagêro”. A pronúncia estarrece, mas o caracteriza.

Vive sua rica literatura de cordel. Ouve ‘causos’ e conta os seus. O amigo, criticado, virou ‘uma jiripoca’. Jiripoca, jeripoca ou jurupoca, do tupi-guarani, diz o léxico, é peixe de couro. Escorregadio e valente, ‘arrebenta’ como trovão, e não se entrega. ‘Virar jiripoca’ é expressão idiomática riquíssima.

O comilão, por ser guloso, está com ‘o surrão vazio’. Surrão é termo árabe, espécie de bornal ou embornal de couro usado pelos pastores para levar comida e objetos de seu uso. A comida, levada nesse alforje, é o farnel, e surrão, nessa acepção, nada tem a ver com ‘surra’ (sova) nem com ‘surrão’, o muito sujo.

A linguagem amplia-se num piscar de olhos, e o desatento perde o sentido das coisas.

Coelho pode ser ‘cueio’; ligeiro, ‘ningeiro’; deslocar o joelho, ‘desnocar o jueio’; ir à igreja, ‘ir na ingreja’. Eis a linguagem livre que a oralidade registra.

O lojista atendia a cliente, exigente que só ela. Não se tinha, nessa época, acesso ao interior da loja. Todas as peças de tecido, roupas e objetos eram levados até o balcão. Descia mais uma, e ela pedia mais. O paciente vendedor já estaria cansado. De repente (nunca diga ‘de repentemente’), uma decisão supimpa: “Seu Ocrido, se o sinhô abaixar, eu tiro a roupa”. E ele se abaixou atrás do balcão. Após ligeira delonga, ele lhe pergunta: “A senhora já tirou a roupa?” Ela se põe de pé. Cara a cara, ambos sorriem. Ironia dele, porque ‘abaixar’ é fazer um menos, e ‘tirar a roupa’ é levar um corte de pano. Ambos fizeram bom negócio.

Mesmo o citadino letrado, ainda hoje, esmera-se em dizer ‘vou tirar um fogão naquela loja’, isto é, comprá-lo, especialmente, se for em suaves prestações. Cuidado: venda à vista (palavra feminina), mas ‘venda a prazo’ (palavra masculina). Se a loja moderna, cujo gerente teria nível superior, usa à prazo (grave erro de uso da crase), por que criticar o sertanejo que usa ‘nóis num pôde ir no adjitório’. Adjutório é mutirão, ajuda comunitária de excelente eficácia ainda em voga em comunidades sertanejas.

Ruim seria ‘digerir o alimento’ tornar-se ‘distruir a comida’: ‘tá cum dor de estambo pro mode a cumida num distrói’.

Riquezas locais: umbu é imbu; vaca graúna é craúna; baraúna é braúna; cobra não pica, ‘morde’; travesseiro, ligeiramente, infantil, é ‘trabiceiro’. Barulho é zumbido; mexeriqueiro é arengueiro; menino olhudo (de olhos grandes ou salientes) é ‘zoiudo’; urubus são ‘us zurubu’; fruta que amadurece, ‘madroce’; de-vez, no ponto de tirar para ‘comê’; comida, levada no prato amarrado com um pano, é o ‘de-comer’, e o lavrador não se queixa nem diz que seria boia-fria. Carrinho de mão, chamado galeota, é ‘galinhota’, mesmo que não se trate de pequena penosa (a franga). O frangote pode virar capão. Folha verde do ouricurizeiro, posta para secar, é ‘foia’ boa para fazer esteira: a ‘isteira’ serve para dormir ou descansar, e nada tem a ver com trator de esteira, nem com o rastro escumoso deixado pelo deslocamento de uma embarcação. Esteira, tecido rústico de junco, taboa ou palha, vem do Espanhol ‘estera’; daí a esteira rolante, que transporta pessoas ou leva material para o forno na indústria siderúrgica; esteira, rastro escumoso deixado pela embarcação, nasce do Latim ‘aestuaria’, da família de estuário, a foz do rio, a embocadura. ‘Esteira’ (marca do deslocamento) tem semântica forte: o mundo, no lugar de seguir a esteira do Iluminismo, tende a seguir ‘a esteira do vandalismo’.

O assunto rende vasta pesquisa, mas terminemos com exemplos conhecidos: ‘melencia’ (melancia), ‘abroba’, tramela (ou taramela), ‘jinela’, caçuá, ‘maxixo’ (maxixe, o fruto), ‘aruvai’ (orvalho), Bastião (Sebastião; bastião é madeira de ‘dar em doido’). A mulher vai a ‘Poção’ (Porções, cidade baiana; porção é uma parte; poção é remédio caseiro, sob a luz da homeopatia). O rego é a fonte (cacimba); ‘cibola’; bagem ou vagem é ‘a bage’; lembra é ‘alembra’, que a etimologia confirma como variante gráfica.

Pausa: Neste sítio, opinião abunda. E você arenga? Perdoe quem não aprendeu ‘o abecê’. E mais: o mundo não reivindica paternidade de morador de rua.

João Carlos de Oliveira

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