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“A polícia não ‘interviu’ (sic) no caso”, diz o texto. ‘Interviu’ ou interveio?

Verbos compostos, como intervir, sobrevir (que seguem ‘vir’), oferecem dificuldade de conjugação. O ouvido atento consegue perceber o lapso do falante; a leitura, acostumada à flexão conforme a regra gramatical, também, nota que o redator não seguiu o modelo.

Modelo, ou paradigma, é o verbo ‘comandante’, o tutor, que obriga a outros seguirem sua flexão. O descumprimento tem ocasionado enganos no uso de flexões verbais, ‘pérolas’ que circulam diariamente no falar e na escrita de alguns usuários.

‘Decompor’ segue a conjugação de compor, que segue pôr, mesmo que sejam empregados com semântica diversa de um para o outro.

Os cientistas decompuseram a matéria putrefata para descobrir o DNA dos mortos. Os autores compuseram uma bela canção. As senhoras puseram a casa em ordem.

Esse processo é simples: ‘reserva-se’ o prefixo, e mantém-se o radical que serve de base ao verbo primitivo: em repor, tira-se RE, e fica pôr. Da mesma forma, em decompor, tiram-se os dois prefixos justapostos (de, com) e sobra ‘pôr’. Se ‘eles põem’, eles repõem, decompõem, compõem. Se ‘eles punham’, eles repunham, decompunham, compunham. Se ‘eles pusessem’, eles repusessem, decompusessem, compusessem. Assim por diante.

‘Conter, deter, entreter, reter’, compostos de ter, seguem a conjugação deste, verbo que lhes serve de modelo ou paradigma.

Se usamos ‘ele teve’, não pudemos usar ‘ele conteu’, ‘deteu’ ou ‘entreteu’, como muitos fazem. ‘Ele teve’ conduz a ‘ele conteve, deteve, entreteve’; ‘ele tinha’, ele continha, detinha, entretinha, retinha. Outras flexões: que ‘ele tenha’, ele contenha, detenha, entretenha, retenha; ‘ele tivesse’, ele contivesse, detivesse, entretivesse, retivesse. ‘Ele retesse’, para o atento e acostumado à flexão verbal, faz doer os tímpanos, e a falha é logo descoberta. A boa leitura cria o hábito de a mente gravar conceitos e exemplos, podendo descobrir o engano de imediato, como se o usuário da Internet usasse senha contrária à habitual. O ‘sistema’, de plano, rejeita; o bom-senso, portanto, e a prática também, de imediato, rejeitam a flexão esdrúxula.

Cheguemos, agora, ao caso de ‘interviu’. O modelo é o verbo vir. Na terceira pessoa do singular, no pretérito perfeito do indicativo, ele ‘veio’. Intervir é composto de vir e segue o paradigma deste. Se ‘ele vem’, ele intervém (forma acentuada por ser palavra oxítona). O fato sobrevém, sobreveio. Se ‘ele vinha’, ele intervinha. Então, ‘ele veio’ conduz-nos a ‘interveio‘. Se a polícia veio ou não veio, a polícia não interveio. ‘Viu’ existe como flexão do verbo ver, que nada tem a ver com ‘vir’, embora sejam irregulares. ‘Entrever’ é que dá ‘ele entreviu’.

Outras flexões: se ‘ele viesse’ (nunca ‘vinhesse’), ele interviesse; se ‘ele vier’ (não ‘vinher’), logo, ele intervier. Em locução verbal, ‘vir’ não flexiona: Ele não pode vir (jamais, ‘ele não pode vim‘). Vir é verbo muito irregular, chamado anômalo (tantas as alterações que sofre em seu radical), mas, mesmo assim, dá para conviver com ele e suas flexões, desde que sigamos um modelo.

Não se pode escalar a montanha íngreme apenas com a força dos dedos e das mãos; se os braços não são suficientes, que as cordas sejam auxiliares. Nossa corda, para escalar ‘intervir’, é vir, suave e leve, mas exigente na sua forma de ser: o relevo da montanha não é regular, vir também tem relevo escarpado. Verbo anômalo, altera bastante seu radical no decorrer de sua conjugação: vir, vem, veio, vimos, viemos, viesse, vinha, venha, viria, vindo etc.

O bom ouvido nos faz ficar atentos.

Logo, ‘A polícia não interveio no caso’, a escrita atenta do texto jornalístico. Essa uma das muitas razões por que devemos respeitar, com todo o prazer e simplicidade, a linguagem cotidiana dos cidadãos simples que não conhecem a gramática. ‘Seus trecos linguísticos’ são outros, têm outro parâmetro, o do idioma ágrafo. Quem aprendeu a escrever tem maior responsabilidade no uso do idioma (supostamente), mais que o usuário que apenas ‘aprendeu’, por tradição, a falar (de pai para filho), percorrendo o caminho íngreme dos ancestrais.

Essa fala é bonita e, assim, deve ser vista, sem a pecha da visão pejorativa.

Ouvindo-se ‘melencia’, ‘dous’ amigos, o ‘pelido’ dele (aférese de ‘apelido’) é Bastião, menino forte, entendemos o porquê das diferenças. São Sebastião, seu xará, o santo, é que o fez assim ‘brasileirinho’.

Isso nos leva a analisar, entremeadas ao falar culto, ‘pérolas’ como ‘adevogado’, ‘previlégio’, ‘mussarela’ (grafia correta: muçarela).E ainda: ‘Ele não deve vim amanhã’ (deve vir). ‘Apartir’ é tão distante como ‘acomeçar’. Ambas não existem. “Ele pode ‘está‘ aqui perto.” Ele pode estar (pode chegar, pode vir, pode ser) etc.

Pausa: 1. ‘Antes da PF chegar’ (Antes de a PF chegar). 2. “Algumas das castanhas que acredita-se terem sido roídas pelo bicho” (ratazana recém-descoberta nas Ilhas Salomão): ‘Algumas das castanhas que se acredita terem sido roídas pelo bicho’. 3. ‘Criança vítima de estupro engravidou e deu à luz a um bebê.’ (Não pode haver esses dois objetos indiretos: à luz, a um bebê. ‘Dar’ é verbo transitivo direto e indireto (não importando a ordem em que os complementos verbais se disponham na frase): ‘Criança vítima de estupro deu à luz um bebê‘ (objeto indireto e direto, respectivamente). 4. ‘Microempreendedores individuais’ são chamados ‘MEIs’. Trata-se de bonita sigla, escrita corretamente. MEI (singular); MEIs (plural). Não use MEIS nem MEI’s. Por isso, EPIs, e não EPI’s ou EPI’S.

Meus honrosos cumprimentos por ter lido o texto até o fim.

 

João Carlos de Oliveira

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