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‘Tentando se livrar de latinhas de cerveja’ é linguagem dúbia?

A dubiedade linguística, ou a linguagem dúbia, motiva olhares diversos aos do leitor-intérprete e, por alguns instantes, dificulta o entendimento do enunciado.

Surgem muitas frases cotidianas com essa nuança. A expressão do título seria uma. ‘Livrar-se’ delas por que são jogadas na direção de alguém, que se esquiva, ou por que tenta escondê-las?

‘Motorista tenta se livrar de latinhas de cerveja’, diz a manchete. À primeira vista, indicaria que pessoas pretendiam atingi-lo com ‘essas armas’, mas, ele, com sintomas de embriaguez, após atropelar um transeunte, ‘tenta se livrar de latinhas de cerveja que estavam no veículo’. E não consegue jogá-las todas fora.

O carrinho do vendedor de coco verde estampa ‘Água de coco da hora’. ‘Da hora’ ou ‘na hora’? Ambas estão corretas. Para caracterizar esse tipo de vendagem, qual a mais adequada?

O que desejaria dizer, salvo engano, é que, no momento em que o cliente pede, a água de coco é tirada, ‘naquela hora’. Natural, saudável. Assim como se vende pão quente recém-saído do forno, como se vende pastel que acabou de ser assado ou frito, a água de coco é tirada em um instante. Cidadão ‘da hora’ indicaria pessoa atrelada aos fatos modernos, que acompanha a evolução dos dias atuais. ‘Ele é da hora’, isto é, está atualizado, embebe-se de todas as informações. Usa-se ‘ele é fashion’ para dizer que acompanha o modismo em voga, o que está em plena vigência.

‘Na hora’ é neste momento, agora. Algum falante, com seu sotaque regionalista, pode usar ‘agurinha mermo‘ para indicar que vai atender a um pedido no momento, sem delonga.  Faz tudo rápido, sem perda de tempo.

Então, ‘água de coco da hora‘ ou ‘água de coco na hora‘? Homem ‘da hora’ é moderno, atualizado; água de coco ‘na hora’ é a extraída no momento em que o cliente a pede.

Curioso é que o vendedor estampa no seu veículo a filosofia “Um copo de água todo dia adeus anemia”. Não precisa de explicação.

O anedotário costuma registrar dizeres picantes ou piadas curiosas. “Corre um dito pelo país todo, confirmando que só tem duas ‘nações’ que não bebem, sino e ovo. Sino, porque tem a boca p’ra baixo e ovo porque já está cheio” (sic), in Mário de Andrade, os eufemismos da cachaça.

Sabemos que a cachaça, para amenizar sua imagem de ‘mardita’, é a branquinha, a saideira, água que boi não bebe (mas raposa ou gambá, sim), que santo não bebe, mas seu Santos adora uma para abrir o apetite ou tomar banho no córrego.

Sabemos que cachaça misturada a pedaços de casca de catuaba é santo remédio para dar vigor sexual àquele falto da libido; que misturada a suco de laranja sara gripe, que misturada a pólvora mata vermes; que misturada a outros ingredientes é mezinha da parida, que o visitante toma e deseja boa sorte a ambos, ao recém-nascido e à mãe.

Depois que se entende que o sino não bebe porque sua boca, estando para baixo, não segura o líquido, que o ovo não bebe porque já anda ‘cheio’, procura-se entender o que significa ‘nações’ que não bebem. Semanticamente, o significado de ‘nações’ é figurado, senão charadístico e irônico. Não são ‘países’ nem ‘povos’. Mas um tipo de gente, uma classe de trabalhador; é linguagem figurada: tipos de pessoas, tipos humanos, membros diversos de uma sociedade. O calado, o fanfarrão, o falador, o pobre, o rico, o feio, o bonito, o cidadão simples, o chapa, o empregado público. Todo mundo é uma ‘nação’, e não há ninguém que não beba. Cada tipo humano ou classe profissional tem seu jeito de tomar um gole ou de degustar seu tipo de bebida, em lugar público ou na calada da noite.

“Toda semana a 1 milhão de Reais” é frase incorreta?

Se a intenção seria o uso do verbo ‘existir’ ou ‘haver’, sim. Com ‘haver’: ‘Toda semana, há 1 milhão de Reais’ (para sorteio). Com ‘existir’: ‘Toda semana, existe 1 milhão de Reais’.

A pontuação da frase não foi boa. Faltou vírgula. O contexto, após nova reflexão, nos conduz a perceber que foi usada a forma verbal ‘concorre’ em linhas anteriores; que alguém, adquirindo um produto, estaria ‘concorrendo’ a esse valor. A mensagem parece pegadinha, embora a frase esteja correta.

Teria sido melhor, de imediato, a redação ‘Você concorre, toda semana, a 1 milhão de Reais se adquirir (…)’. É que o olhar e o pensamento do comprador podem ter sofrido estresse e não teriam tempo de rever todos os recursos linguísticos para entender o texto. Não nos convence o vendedor que quer conquistar o comprador com subterfúgios. A boa propaganda é direta. A dúvida e/ou a dificuldade para elucidar dizeres afugenta a clientela.

Pausa: 1. A propaganda anuncia que um supermercado moderno, com suas gôndolas, tem ‘várias sessões’. Houve uma baita dúvida. Como se trata de setores em que são vendidos produtos, têm-se várias ‘seções’, as divisões dos locais de venda: seção de laticínios, seção de material de higiene, seção de cosméticos, seção de cereais, seção de ‘secos e molhados’ (esta usada em tempos idos). 2. O orador, em uma academia, fala a seus interlocutores, comentando as atitudes humanas. De repente, alterca: “É preciso buscar outras alternativas” (para recuperar alcoólatras). Sabe-se que o vocábulo ‘alternativa’ já contém o lado semântico de ‘outra coisa’, contido no elemento ‘alter’ (outro, outra). Bastaria dizer ‘buscar alternativas’, sucessão de coisas que se repetem com alternação; escolha dentre duas (ou mais) possibilidades; sistema de duas proposições em que a verdade de uma resulta na falsidade da outra, e vice-versa (parte da Lógica), como diz um dicionário. 3. A loja insiste em divulgar no carro de som o valor de calças masculinas a ‘R$ 49,99’ (quarenta e nove Reais e noventa e nove centavos). Trata-se de propaganda capciosa. Por que não ‘R$ 50,00’? O preço anterior é convidativo, e este não seria atraente? Por que não vendem o produto por R$ 49,00, R$ 49,50 ou R$ 49,90, dando de fato o mísero troco ao cliente? Vendem um produto por R$ 1,99, mas não aceitam R$ 1,95. Quem vende um produto por R$ 1,99 (e recebe R$ 2,00) não estaria fazendo propaganda enganosa? Não se pode acreditar nesse marketing. O vendedor deve aprender a dar o troco ao cliente, mesmo o mísero centavo. Como não o tem, e um centavo nada vale, que mude o valor da venda e a forma de divulgar o preço.

 

João Carlos de Oliveira

One Comment

  1. Tentando se livrar de latinhas de cerveja’ é linguagem dúbia?
    O texto retrata uma realidade brasileira, onde o “jeitinho”, tornou-se um ato de ludibriar. Infelizmente os brasileiros perdem com isso, e somos analisados pelos analistas da alma como homens loucos e dementes. A integridade é um traço de personalidade que o homem ludibriador desconhece.

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