As palavras, sua semântica, e um pouco de pilhéria

O vocabulário, o linguajar cotidiano, o regionalismo. Eta! diversidade interessante, quão rica a semântica, mesmo que um termo seja tomado de forma depreciativa ou pejorativa e os olhares se voltem para o falar hilariante de algum usuário.

Certo amigo letrado conta esta estória: O caboclo vai a uma lanchonete e pede um misto-quente. Diz a atendente: “Alguma coisa para beber?” O caboclo, ‘ensimesmado’, olhando para um lado, para o outro, responde sisudo: “Para bebê, somente fraldas!”, como se dissesse “Eu não sou bebê.”

O falar diário tem muitas versões. Um homem cansado é um homem exausto. Um homem exausto é um homem abatido. Um homem abatido é um homem derrubado. Um homem derrubado é um homem extenuado. Um homem extenuado é um homem exangue. Um homem exangue é um homem debilitado. ‘Mortinho de cansado’.  O poeta diz ‘homem alquebrado’, e o bebum, ‘homem quebrado de tanto dar murro em ponta de faca’ (de passagem, muito afiada!). E mais: enfraquecido, esgotado, exaurido, fragilizado. Enxabido. Epa! O léxico todo vai aqui.

Viático é a provisão de dinheiro ou víveres para viagem; o farnel, ou o que é levado dentro dele. Em tempos que se foram, o viajante levava sua própria comida. Farnel ou matula, de couro ou de pano, é alforje, que serve como ‘guarda-comidas’ em viagem longa. No campo religioso, viático é o sacramento da Eucaristia ministrado a enfermo em sua residência, quando impossibilitado de sair de casa. Quase uma extrema-unção, o viático supunha preparar a alma para o outro mundo. O pároco, sob a cumeeira do pardieiro coberto de sapé, bebe água da talha, trazida na cumbuca da cacimba mais próxima. O tanque do sertanejo.

Vinhático é árvore brasileira (…) de madeira castanho-amarelada (muito usada para fazer móveis de luxo). Não se pode esquecer da baraúna, do jequitibá, da jurema, da juerana, da aroeira, do pau-d’-arco, da sapucaia. Todas estão morrendo pela ação maléfica do homem moderno. Meu Deus!

Olheira é o sintoma de pálpebras caídas. No plural (olheiras), são as manchas azuladas que circundam os olhos, provenientes de perturbações físicas ou psíquicas. Alheira é uma espécie de chouriço criado pelos judeus à época da Inquisição. As alheiras têm como base a carne de ave misturada a muito alho, com pão, azeite e outros ‘melindres’.  No dejejum, e que desjejum!, são deglutidos muitos nacos de alheiras.Um termo ou outro, a primeira refeição do dia, ‘mata a fome’ assim mesmo. Dejejuar não é ter ‘coffee-break’.

O frescor de uma área salutar, como o campo, não é o frescor de um jovem, seu vigor físico ou sua jovialidade.

É penoso distinguir lactose (dissacarídeo – açúcar natural – que constitui o principal carboidrato do leite dos mamíferos) de lactase, enzima secretada pela mucosa intestinal , que converte a lactose em glicose e galactose. Em dias idos, entendia-se que lactose seria a reação que se tem ao uso do leite de vaca. Lactose e lactase são termos de semântica distinta, e seu radical, ‘lact’, da família etimológica do vocábulo leite, cujo adjetivo é lácteo, cria lactante (a que amamenta) e o lactente, o que é amamentado. Lactante é a mulher que aleita, e lactente, o pimpolho não-desmamado que suga o pobre seio até ‘desfalecer-se’? O sugado ou o sugador?

Se debilidade, que vem de débil – fraco, esgotado, frágil – é ‘a falta de energia’, quando há um blecaute, devemos dizer que a rua está às escuras por absoluta debilidade? Debilidade deixa de ser fraqueza ou debilitação e passa a ser um item do consumo hodierno.

Afluente recebe os efluentes de empresa poluidora (chorume, esgoto não-tratado etc.), e o manancial morre por inanição, asfixiado por falta de oxigênio.

O cidadão, perseguido em seu país, pede asilo no torrão amigo. O homem de bem passa a asilado. Já o poeta, como um inconfidente, é mandado para a África como degredado. Poeta exilado. Se o degredo é solicitado, dá-se o asilo; se é por motivo de ordem suprema do chefe da Nação, dá-se o exílio. A Canção do Exílio, do grandioso Gonçalves Dias, que faleceu sob as águas calmas na baía de sua própria terra, viveu o exílio da poesia romântica. Asilo e exílio podem ser sinônimos, mesmo com a semântica tão diferente.

Vá ao mercado de sua cidade e peça um quilograma de toucinho. Perguntar-lhe-ão se se trata de um objeto comum, de um pingente ou de um produto importado.

Já cuidou de suas cutículas com uma manicura nipônica? Quanto você paga pelo tratamento feito por uma pedicura? ‘Manicura’ e ‘pedicura’ são erros de grafia, seriam neologismos ou são impropérios?

Apague as coisas deléveis, moradoras de sua mente, leves ou pesadas, para não atrofiar seu comportamento ou interferir na sua rotina. Todo rotina é diária! O fósforo encontrado no estreito de Bósforo pode vir de águas sulfurosas.

Um regionalismo metafórico – excesso de tecido adiposo – não é uma metáfora regionalista. É a realidade do superconsumidor que cria sua obesidade mórbida, matando a si mesmo e arraigando hábitos alimentares.

Supimpa a xícara de café preparada pelo barista, muito bairrista! Na colina, o vento frio bate na folhagem e produz um frêmito frenético, que faz os olhos sorrirem enquanto amam a Natureza. Mostrar e amostrar são os dedos da mesma mão: têm a mesma significação.

Por hoje, basta.