‘Cumpade, me dá seu binga pra mode eu cheirar o pó’. O que é isso, companheiro?

Isso, companheiro, não é pó de pemba. Não é imoralidade nem tem a ver com ‘pó’ na atual conjuntura. E o que é, companheiro?

Tentemos traduzir a coloquialidade da fala regionalista que vem perdendo força no espaço cotidiano.

‘Compadre, me dê o binga para eu cheirar o pó’ (um pouco de rapé), linguagem mais próxima do falar culto.

‘Binga’, companheiro, é pequeno chifre, com certa cavidade, em que é guardado o rapé para uma cheirada ligeira, costume que ainda se mantém em algumas regiões de nosso País. Vindo do Quimbundo ‘mbinga’, idioma africano, binga é chifre; por assimilação, ‘o binga’. Entre nós, uma caixinha; por assimilação, ‘a binga’. Familiarmente, ‘o bilau’ do menino pelado numa comunidade pobre.

Rapé, termo de origem francesa, é o tabaco especialmente preparado em pó torrado para ser aspirado pelas narinas. Em quase toda bodega do passado havia um pote, assim como se guarda tempero, com um rapezinho ‘cheiroso’ para ser vendido aos adeptos desse hábito, ‘excelente’ para combater o ‘defluxo’, acompanhado de tosse frequente, que expunha certa coriza não muito ‘simpática’.

Defluxo é proveniente da gripe enjoadinha, parecida com a influenza de hoje, que acometia algumas pessoas, talvez, com alimentação deficiente ou moradoras de ambiente ligeiramente insalubre.

O rapé pode ainda ser encontrado em tabacarias de luxo, produto nacional ou importado. Um dos maiores exportadores de charuto seria Cuba, país dos Castro, e, aliado um produto ao outro, o rapé é companheiro do charuto. O Recôncavo baiano produz bom charuto, que deve estar aliado a um bom rapé.

‘Andar com a binga cheia’ seria ter uma caixinha com rapé para uso pessoal e oferecer aos amigos. Boa pitada na binga do compadre nenhum mal fazia.

No Nordeste, a tabaqueira de chifre (trabalho de artesanato) é a binga. Por tradição, os mais apessoados, de boa condição financeira, sempre tiveram uma binga em casa e a carregavam na algibeira espaçosa.

Curioso dizer que o lampião de querosene (ainda existente, objeto bojudo com uma matéria combustível e uma mecha) também é chamado de binga, ou fiofó, ou lamparina. Feito de flandres por um funileiro do lugar, servia de meio de iluminação na casa sem energia elétrica. Nos idos de 1960, em Cachoeira Grande (Jacobina, BA), ‘vivi’ um lampião em cima de pequena mesa guiando-me os olhos para o feitio da tarefa escolar ou a leitura de um livro.

Exclua o sentido pejorativo ou obsceno (que indicaria ânus) e entenda ‘o fiofó’ como a candeia, o candeeiro, usado para ‘alumiar’ a casa do pobre no sertão. A depender do nível da família, tinha-se na casa, no lugar de um candeeiro, uma candelária, mais prática e com um foco de luz avantajado (abrangente).

O compadre empresta o binga para o amigo cheirar um pouco de (seu!) rapé, que é bom para combater o defluxo, ‘corrimento decorrente de inflamação da mucosa nasal; catarro nasal, coriza’.

Não se espante com o linguajar do interior. Você já ouviu dizer que fulano não dá mais no couro? A libido está cansada e não sustenta mais ‘o prumo’. Eis o falar espontâneo da simplicidade interiorana. Não seria bom que essa grandeza caipira esteja perdendo espaço. Todo cidadão do interior agora é ‘muderno’, aprende a fala dos sabidos, perdendo sua originalidade. Caboclo está mais para a ficção, os ‘causos’ de homens com a mão calejada estão desaparecendo. O tempo dos bois de canga, da festa de São Jorge e da marujada está morrendo num país que ainda não se educou totalmente nem se modernizou. O tempo das bruacas, da casa de farinha, do viver em cada canto, em que se colocava a cadeira na varanda ou na frente da casa para se darem notícias das ocorrências das redondezas está apagando a última chama. Qual era a moçoila mais bonita, se ‘tinha’ uma alcoviteira ali por perto, se fulano ‘pulou a cerca’, com quem a noviça tinha fugido na garupa do cavalo, se o homem mais rico do lugar iria fazer um adjutório. Tudo está virando ossuário em cemitério abandonado.

Não pense que é bom ‘nosso mundo’ não ser mais como antes. Isso ‘mata’ o povo, sucumbe nossa cultura pouco evoluída, deixa de lado a tradição natural do homem simples. Não se usa mais um jaleco, um gibão, o vaqueiro original está desaparecendo, a mula quatralva (cujas patas tinham uma parte branca do joelho para baixo) não é mais vista na estrada, com aquele ‘picadinho’ manso, sem machucar a coluna do viajor habitual.

O Brasil muda seus hábitos bruscamente? Talvez, e de tal modo que falar ‘binga’ pode sugerir termo chulo. A caixinha de rapé, também chamada boceta – ‘pequena caixa redonda ou oval’ -, está em desuso. Poucos a conhecem como palavra arcaica. Na linguagem, o arcaísmo fomenta o neologismo, assim como o mais velho passa ao mais novo a sabedoria dos tempos que não voltam mais.

A língua portuguesa é grandiosa riqueza, manancial que faz o riacho correr o ano inteiro.

Abraços.