Regionalismo, sotaque, os Brasis e dois dedinhos de nosso acervo linguístico-cultural

Nossa linguagem, como nossa cultura, é múltipla. São os variados ‘idiomas nos Brasis’ de nosso Deus misericordioso! O sotaque mineiro, carioca, gaúcho, paulistano, tudo mesclado forma o Patrimônio Imaterial da Nação Brasileira. E o baiano! Vixe! O sotaque soteropolitano é porreta! ‘Tetio’ não gosta de menino choramingão. Tão porretinha, que, na conurbação, pão francês vira cacete, pãozinho é cacetinho, e bisnaga é cacetão. Cada Estado tem sua silhueta linguística. Mineiro não gosta de palavra ‘compreta’: as sílabas iniciais valem o corpo inteiro de toda a ‘bel’orizon…’! O meninim é sabidim, viu!

Não se pode ascender um falar e discriminar outro: todos estão inseridos em nossa vivência coloquial, de raiz profunda, e seria prejuízo tirá-la do fundo de cada nascente. Pode acabar a seiva da cultura regional.

O carapanã, cujo gêmeo é o pinima, mabaço do Aedes aegypti, não é a muçuroca, sovela ou miruçoca do Nordeste. O pernilongo do Sul não é o borrachudo do Leste ou Centro-Oeste. O Norte tem um ‘musquitim marvado’ que pode ‘inté matá’, causador da malária. “Tio, tem muita muriçoca aqui?” “Muri tem pouca, mas a que soca tem muito”.

Banana-filipe é amuleto, pois espanta mau olhado. Meu Deus! O sebo fechou, e não houve a audiência porque o meirinho tinha viajado.

O ‘tu’ gaúcho é diferente do usado pelo caiçara paulista. Se a música de Jackson do Pandeiro “Procurando tu” tem boa rima, a uniformidade de tratamento desaparece. Isso não é problema. O chato é a regra da Gramática, que condena: “Teu pai quer falar com você. Seu pai quer falar contigo. Seu pai quer falar com tu.” Todas cumprem a missão sublime de comunicar, tao grandiosa quanto a poesia de Pessoa: “Navegar é preciso”, pois ‘falar é preciso’, não importa em que idioma, com que sotaque, que brasileirismos usam-se ou se a regra vai ser cumprida ou sacrificada. O coitado anda com ‘o zezinho’ de fora, porque o calção já está roto. Terraplanagem, terraplenagem, percentagem, porcentagem, catorze, quatorze. Nem mais se sabe o que escrever.

Não chupe ‘bala’, porque mata. O bom é caramelo. Compra-se xibio (ou xibiu) no quiosque de seu Manuel: cinco por um Real. Laranja-cravo, como a mexerica, não é poncã, que é de pura enxertia. Bergamota tem sabor adstringente?

A ‘porrrta’ está com a tramela quebrada. Na casa de meu avô, toda porta tinha taramela, na ‘conzinha’ tinha prato de esmalte, chocolateira, panelas de barro, um caçarola de ferro, e cristaleira era coisa da cidade. Cuia servia para tirar água da cacimba e para comer ‘cambrecho’ no curral bem cedo, leite tirado da vaca craúna.

Minha tia gostava de ‘agu-ar’ as ‘prantas’ no final da tarde, e chamava aquele pirralho parrudo para encher o carote. O jumentinho era manso, e não se espantava se a bruaca era velha ou nova, desde que o couro não fosse fedido. A prima Mariinha gostava de quermesse para ‘arrecardar’ fundos para a festa de final de ano no Roçado, o bairro mais novo de Cachoeira Grande, vilarejo que se tornou povoado e hoje é um distrito. Visse, meu irmãozinho chegado!

Tio Nelzinho pegou ‘uma puta’ de uma sezão e ‘cuasi’ morreu de tanto tremer. A cabeça tinha uma baita dor. Era febre brava. A quenga que morava com dona Zizinha era bonita e maneira, jeitosa para ‘apanhar’ uns trocados. A jovem da Caboronga se casou, deu ‘umas no claro’, e aí Claro saiu de debaixo da cama. Coitada da bichinha! ‘A fôrma ficou afolozada.’

Hoje, encanador não é mais ‘bombeiro’. Alguém pode não saber o que é ‘bombeiro hidráulico’, mas sabe o que vem a ser ‘wi-fi’. Nunca viu um macaco hidráulico, que parece palavrão. “De repentemente’, todo mundo tem que se ‘aprevinir’ se não a manteiga não dá para passar na bolacha. Passar no concurso é diferente. Comer um guisado parece coisa feia. Pau-d’água é palavra desconhecida.

O mais falante daquela vila gasta muito ‘calvão’ no fogo do churrasco; o mais jovem pode não saber preparar a ‘malmita’, e o ‘galfo’ que usávamos lá em casa ficava ‘ferrujado’.

O pardieiro de que falou Monteiro Lobato em Urupês é desconhecido, mas as ‘mina’ ‘mudernas’ gostam de ‘jugar bola cuma os minino’ e moram nas quitinetes. Não usam galocha, não conhecem quitutes nem se satisfazem com as brevidades de vovó Dindinha.

Lá pelas plagas distantes por entre as serras de Jacobina, as mulheres da grota colhem ‘arróis’ vermelho maduro para fazer ‘arroz-doce’, que a gente do lugar mistura com doce-de-leite em calda, porque fica uma delícia. Calda de doce não é cauda de algum bicho nem caldo de feijão é canja de galinha. Essa moça dá um caldo, e o homem mais rico dos ‘arredor’ fez um adjutório no dia do noivado: casou-se nas festas das Missões. Até carro de boi tinha na festança. Tinha vaqueiro de gibão, cavalo com caçuá cheio de aipim.

O plantador de ‘cibola’ nem sempre usa ‘bonel’ sob o Sol a pino; o que ele quer é visitar a Cidade Eterna e aprender um tiquinho dos vocábulos latinos que o alfarrabista gosta de usar.

O cara é doido da cabeça, mas nunca fica doído se ‘arguém’ lhe cobra o ‘aluguer’. “Tô cum uns treens aqui na cabeça e vô pará di escrevê”. Quando o cliente pergunta ao dono da loja de embalagens se ele tem ‘marmitex’, diz que lá não é ‘restorante’. No restaurante, o garçom dizia a marmita saía por dez ‘Real’, ‘derne’ que o freguês ‘trussesse a marmitex’.

O dicionário traz relação de regionalismos, e humoristas ‘proseiam’ com um sotaque estranho, que parece nordestino, mas é o de todo mundo, já que no Brasil é tudo misturado.