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O lúdico e a metáfora, ventos que espraiam a polissemia e a linguagem cotidiana

Inda bem! Estão inovando os falares, sem tomar palavras ao pé da letra.

Certamente, isso é muito bom.

Esse comportamento linguístico nos deixa à vontade, abertos para novas conotações, momento em que os termos são tomados figuradamente, e a metáfora se torna a dona do pedaço, a base da poesia cotidiana, com exemplos similares aos de grandes vates da Literatura, daqui e de além-mar.

As metáforas desses recados descontraídos são grandiosas, à altura de Camões, de Dante Alighieri, de Fernando Pessoa, de Guimarães Rosa, de Castro Alves, de muitos outros que nos deixaram fortunas literárias nem sempre reconhecidas. A diferença, se houver, entre as que envolvem o título deste artigo e as dos emblemáticos poetas e escritores, evidentemente, é que esses baluartes decifraram a História, a Geografia, a própria Literatura, e os de hoje, de criadores de imagens metafóricas, cruzam o cotidiano com o hilário, o que nos faz rir.

Eis o que venho elogiar hoje, comentar na medida de ‘minhas posses’, como dizia meu avô materno, João Elias Viana, lá em Cachoeira Grande, Distrito de Jacobina, nos idos de 1960: ‘Compadre, eu posso lhe servir, mas na medida de minhas posses. Se for além, vamos rever o seu pedido”, o dito e certo para deixar o ‘pidão’ boquiaberto, ou antenado para ser modesto e não pedir tanto.

A sabedoria humana está nesses atos.

Vamos ao topo do que queremos analisar.

O lúdico é o engraçado, o hilariante, a acrobacia da menina de 10 anos no topo do circo popular, o mambembe, o circense, a brincadeira das cantigas de roda, a ciranda-cirandinha da professora com os pimpolhos ao ar livre no pátio da escola simples no interior do Brasil, cuja aprendizagem é magistral, a demonstrar que se aprende muito, do discente ao docente, com a simplicidade do dia a dia, e que a escola não é o sofisticado, como querem alguns no Mundo hodierno que não sabe a direção do caminho a ser seguido.

Basta vermos a arte popular da rua, do boteco, da feira-livre, do agogô a partir de latas velhas manejadas por crianças poéticas e musicistas, de outras inventando o reco-reco.

A metáfora é o sentido maioral dado a um termo, como na Literatura de Cordel, na poesia cotidiana, na chula, no samba-de-roda do Recôncavo de Cachoeira, São Félix, Muritiba e circunvizinhança. Não estamos desprezando as metáforas dos grandes mestres da Literatura. O que queremos focar é a metáfora descontraída, que dá suporte à poesia, sem a qual essa mesma poesia estaria morta.

A metáfora deixou de ser, apenas, do domínio de poetas, de escritores outros, de dramaturgos e filósofos, de grande orador do nível de Rui Barbosa ou Joaquim Nabuco.

Vamos, agora, ‘ludicar’? Este neologismo, neste momento, nasce nos gorgomilos deste poeta baiano, editor deste site, com o intuito de chamar a atenção para o tema.

Ludicar, como?

Inventando brincadeira com palavras hilariantes. Tudo que eu disser, você diz ‘parida’.

A vaca… Parida.

A onça… Parida.

A jumenta… Parida.

Estou… Parida.

Vamos, agora, metaforizar?

Inventando frases com sentido especial. Se o enamorado platônico diz que a jovem é ‘a luz que ilumina seu caminho’, podemos dizer que ‘a poesia é a rosa de nosso falar cotidiano’.

O vídeo curto, entre os chamados ‘shorts’, de um casal ultrassimpático, que deve estar ganhando bons trocados, com o sorriso da jovem bonita, cria mensagens metafóricas, e lúdicas, que desconcertam.

Ela chega com um aparelho, que seria ‘um chuveiro elétrico’, e diz para ele:

“Você dá uma testada para mim?”

Em seguida, vemos a imagem do mesmo objeto sendo batido na testa dele várias vezes.

Houve a ‘testada’ que ela pediu (o teste), mas não a confirmação de que o objeto estaria bom, em perfeito funcionamento.

Testada, no dicionário, é a pancada com a testa.

Deu uma testada no poste, na parede.

Em outro sentido, testada é a medida da fachada de um prédio, a linha que separa uma propriedade particular do logradouro público (esta semântica não seria popular), ou o sentido de divisa ou limite entre terrenos.

Dizem, também, que uma testada (na vida) é quando alguém comete uma tolice, um erro, como dizer que fulano praticou um ato sem ser verdade, o que se torna hoje uma injúria.

O casal é que deu nova conotação ao vocábulo, e testada não foi o teste…

A risada silenciosa dela, saindo de fininho, a dizer ‘Seu bobo, você não entendeu o que eu quis dizer’.

Testada vem de testar, que vem de teste, termos cognatos, por terem o mesmo radical (test), por serem da mesma família etimológica, com possível alteração de significado.

Testar, deixar um testamento; testar, verificar, comprovar; testar, enfrentar o inimigo; testar, demonstrar conhecimentos.

Ele foi testado na entrevista. O relê foi testado. Não teste os saberes de pessoa ignorante.

E se ele desse ‘uma testada nela’, porque teria (se) confundido, já que ela disse ‘dar uma testada para mim’, muito próximo de dar uma testada em mim. O que se entende mal gera conflitos.

O lúdico, portanto, pode vir da inocência, da simplicidade, não somente do festivo, do hilariante, provocando risos majestosos.

A dançarina bonita, que criou a performance de bailar, de jeito sensual, em locais públicos, admirada ou desprezada, metaforiza quando, como aprendiz para ser motociclista, com a instrutora na garupa da motinha, lhe diz, depois de a aluna testar o funcionamento do veículo: “Agora, saia devagar”.

Ela não dá partida ao veículo, mas, acatando a ordem, ‘sai devagarinho da moto e caminha ao lado’ (tristonha, sem entender porque a instrutora obstruiu a aula).

Essa dançarina vem conquistando espaço em vídeos hilariantes. Em outro, recebe a advertência do cidadão, seu companheiro, que fica à espera de ela fazer compras na loja: “Devagar com as compras” (sic), que seria “Por favor, compre menos, não gaste tanto”.

Na loja, entretanto, a bailar, bem devagar, enche os braços de mercadorias e retorna ao veículo ‘coberta’ de pacotes.

Pagou a conta, menina? Ele concorda com os valores gastos?

Deve ter pensado: coitado de mim, não fui entendido.

Ela está provocando nossa interpretação, com termos do dia a dia, como a criança que vê árvores ‘desnudas’ (queimadas pelo fogo) à beira da floresta copada, e pergunta: “Mãe, por que aquelas árvores estão peladas?”

Lembremos a seção Criança diz cada uma!, das revistas Manchete e Pais & Filhos, do saudoso editor Pedro Bloch.

O médico diz ao cliente com risco de diabetes: “O senhor deve cortar o açúcar” (sic), e o paciente, já em casa, pega a faca e corta o saco de açúcar ao meio, momento em que alguém pode criticá-lo, mesmo, assim, certo, com toda a ingenuidade.

Devagar, que o santo é de barro.

Devagar, bom termo para tomarmos certas atitudes, diferentes das habituais, sem condenarmos o usuário.

O jovem erra a resposta da questão de História do Brasil quando responde que foi um ato ‘diminuto, pequenino’, mas o mestre teria dito em sala de aula que o ato histórico foi ‘insignificante’.

O discente usa a sinonímia, mas é ‘desacatado’ pelo professor em sua veste professoral.

Ficam o olhar de um e o pensar de outro.

As metáforas, veias abertas da Literatura, e o lúdico, caminho simples do cotidiano.

 

Um abraço por você ter dissecado o viés de sua análise.

 

João Carlos de Oliveira

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