0

Elucubrações de um analista pequeno sobre a performance gramatical

Um dos substantivos usados no título já faz divagar: elucubração é lucubração, palavras múltiplas. O uso do idioma clássico é estar na mata virgem: só ‘tem’ urucubaca, e o caapora nunca é visto.

A revista de texto erudito propaga que “Nunca ‘teve’ tanta concorrência como hoje (…)”, entremeando a vida da clientela. Mas é o vizinho que populariza: “Tá tendo fruta nesse pé aqui”.

Preferir é verbo transitivo direto-indireto: exige dois complementos verbais, desde que seja um direto e outro indireto. Quem prefere, prefere uma coisa à outra. ‘Prefiro morrer a ser escravo’, mas o popular diz ‘Prefiro morrer do que ser escravo’.

A declaração de famoso político “Prefiro morrer do que passar para a história como mentiroso para o povo” pode tornar-se best-seller mundial da Literatura. E ‘Preferir morrer a passar para a história como mentiroso para o povo’ não o é.

Alguém da sociedade alta declara: “Prefiro passar fome no Brasil do que morar na Europa.” Trata-se de perfeita autenticidade, de verdadeiro ufanismo. ‘Porque me ufano do meu país’, de Afonso Celso, mineiro de família nobre, é obra autêntica. O ufanismo tem a ver com a xenofobia, não no sentido escrachado ou discriminatório-pejorativo. São termos distintos, mas se completam. O primeiro passo é o patriota amar o torrão como ama a si próprio para depois preferir a plaga alheia. Ser xenófilo não tem como prova ‘admirar a pátria alheia’. O ufanismo se torna paralelo à xenofobia. (?)

‘Filósofo de rua’ diz que todo homem que não gosta de mulher é… (enumera vários termos: v… g… ou com um fonema ‘criado’ na hora). Há quem tenha horror a mulheres, mas não seria um entre os nomes. O misógino, definido no dicionário como ‘aquele que tem misoginia, a antipatia ou aversão mórbida às mulheres’, é isto, mas não é aquilo. O misógamo, o que tem aversão à misogamia, isto é, que odeia o casamento, poderia ter uma companheira pelo menos brevemente. Hoje, diante de tanta modernidade, poderá viver comunhão estável, e ter companheiro/a, ‘patenteando’ modelo de contrato de vivência homossexual. Ultramoderno, talvez, venha a extrapolar incisos do CC e do  CPC. Contrato tácito ou explícito vale muito: o que se combina tem força de lei.

Tetraneto, depois do trineto, do bisneto, do neto, é, simplesmente, ‘tataraneto’. Vivam as variantes gráficas. Termos difundidos em todo o País, tataraneto e tataravô relatam costumes: o filho do trineto ou da trineta é a criança mais linda da família, cujos tataravós podem deixar vasta propriedade latifundiária mas altíssimo legado cultural: a fala que se propala de pai para filho. Por anos e anos, ou por um século e meio: um sesquicentenário.

Quem prefere, prefere isso àquilo. Como seria difícil falar assim no meio popular! Nos barezinhos da vida, falar com um amigo que ele deve ‘preferir cerveja a coca-cola’ é impropério. O bom é a linguagem direta, que não se preocupa com etiqueta ou regra. O resto é balela. Quem sabe bater o bumbo não precisa de ‘batuta’; vai com a mão mesmo, nem que doa muito.

‘Doa’ não é de doar : a família da vítima, desde que esta tenha declarado assim em vida, autoriza a doação de órgãos com teor declarado em documento; ‘doe a retirada de pele, coração, fígado, retina’ etc. para salvar vida de outrem; de outros.

Esse vaivém deixa o usuário sem pé nem cabeça ao falar em sessão solene ou ao escrever em documento, petição, carta, ata ou monografia na conclusão de curso. Até em tese de doutorando são visíveis os lapsos que desobedecem à norma gramatical. Isso implica no afastamento do usuário da gramaticidade. Implicar, nesse conceito, não é transitivo indireto (implicar em), apenas transitivo direto: implicar, com a semântica de ‘resultar em’; agora, sim, a preposição em pode ser usada. Isso quer dizer que verbo transitivo indireto (gostar de) pode ter sinônimo transitivo direto: amar, adorar. ‘Implicar um resultado’ (transitivo direto) é sinônimo de ‘resultar em’, transitivo indireto. Gramatical barafunda!

Esses liames deixam-no perplexo. Perplexidade não é o mesmo que obscuridade nem ambiguidade. A dúvida é o receio de desagradar e ser avaliado como palerma já que em casa fala rasgado ‘Nóis vai’, e pronto! Na tertúlia ou na festa de aniversário comemorada em clube de elite, o orador tem o temor de cometer linguística gafe. “Nós ‘estreiamos’ idade nova”, talvez, não seja perceptível, por isso o uso de forma verbal tão arrizotônica não seria erro. Eu estreio, tu estreias, ele estreia… nós ESTREAMOS, vós ESTREAIS… eles estreiam. Eu estreei, ele estreou. ‘Eu fui à escola’ não diz mais que ‘Eu fui na escola’, sem ter ido nela. ‘Eu fui na garupa da mula de bom picadinho’ e ‘Fui à missa dizer o terço com o padre’ se tornam jargões, do popular e do culto. A fé que propaga paz ajuda quem faz o dízimo, que auxilia a Igreja. Tudo é espontâneo, porque o fiel quer o retorno, a bênção espiritual. Uma ida, uma volta. A mão que afaga, outra que acolhe, que colhe o fruto.

O grande escritor-humorista-poeta Millôr Fernandes (que seria Mílton; o diferente se tornou famoso) disse algo interessante: quem conspira não gosta de que haja chefatura (em livre hermenêutica). Mas o mundo não pode ficar sem um cabeça; a performance milloriana, sabiamente, registra: “Os conspiradores que se unem contra uma tirania começam submetendo-se a um chefe”.

São contra um tirano, mas para comandar o ato de coragem que combate a tirania elegem novo ‘chefe’. Dá-se o mesmo efeito sísmico. A conspiração, a trama contra o Estado, começa por existir a partir do momento em que se elege o comandante contra a usurpação de direitos. São contra a usura, mas não querem que o outro ganhe o dindim sozinho. O lucro tem que ser dividido ‘com nós’. Dividam-no conosco. Com nós dois é pouco. Tem que se com nós todos.

O analista se perdeu na bifurcação: é melhor dizer alguma coisa que nada dizer, desde que não seja pura idiotia a idiotice que se diz. Vale um pássaro mais que os imaginários.

João Carlos de Oliveira

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *