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Pelo menos na área rural, seria comum a expressão ‘estrumar o cão’. O que isso significa?

Estrumar, como se percebe, é um vocábulo da família etimológica de estrume.

Estrumar o cão seria, pois, ‘jogar estrume no cão’? ‘Sujar’ o cão com estrume? O que é estrumar em contexto assim?

Não se trata de ironia ou chacota com a semântica da palavra. O que é necessário deixar claro é que um mesmo radical, com seu significado ‘inicial’ em um vocábulo, passa a ter um novo em outro momento.

O dicionário nos esclarece essa variada semântica e esses diferentes significados: 1. estrumar é estercar, adubar com estrume. E o que é estercar? Colocar esterco, usar detritos, como ‘cocô de galinha, bosta de boi’ etc. para ajudar no crescimento das plantas. Trata-se de adubo orgânico, muito usado pela agricultura familiar orgânica, processo de adubação que deveria ter maior uso em todo o País. Sinônimos: estrumar, estercar, adubar. 2. estrumar é açular os cães a atacar, atiçar os caninos para que efetuem a tarefa de defender seu dono de algum ataque ou instigá-los a dominar um invasor: um bicho (onça, raposa, boi etc.) ou o ser humano. Significado mais direto: motivar o cão a morder.

Já estamos no mundo da polissemia, fato de uma palavra ter mais de um significado, a depender do contexto em que é empregada. Não se trata de brincadeira: o dicionário diz, em uma de suas versões, que ‘estrumar’ é adubar. Entendendo-se que o cão ‘pode ser estrumado’, não se pode entender que o cão poderia ser ‘adubado’. Então, repitamos o aspecto curioso da semântica: um terreno adubado pode ser estrumado, mas um cão estrumado não pode ser ‘adubado’. O cão foi instigado; o terreno foi estercado.

O sinônimo que, talvez, não seja conhecido de quem tem vocabulário não tão abrangente é que estrumar (o cão) é açular, e que estercar é o mesmo que usar estrume (de gado, por exemplo) nas plantas. Estrume é a mistura de restos orgânicos, matérias calcárias etc., fermentados, utilizada como adubo, esterco. Esterco de boi.

Um cidadão tinha um pequeno caminhão, modelo antigo, usado na área rural para transporte de animais e afins. Transportava também esterco dos currais para áreas de plantio, meio muito requisitado entre os amigos e clientes do convívio rural. Um pouco criativo, não perdeu tempo e acoplou um letreiro na parte frontal do veículo com a mensagem ‘Carro transbosta’. Existe carro de bois. Há registro de ‘Transgado’.

Pulando de pau para cavaco, estercar é nosso conhecido, mas esterçar (com cê-cedilha!), não. “Está inventando coisa, professor?”, perguntaria um amigo.

Consultando nosso representante cultural, o dicionário, ele nos relata: esterçar (verbo pouquíssimo usado) significa ‘girar bastante o volante de um veículo’. Girar por mera necessidade ou fazer aquela manobra sinuosa, correndo o risco de causar acidentes?

Deve ser limitado a um grupo profissional ou região. Pouco se sabe a respeito de ‘Eu esterço o volante de meu carro na estrada’. Se o usuário disser ‘Eu esterço muito o volante de meu carro quando viajo’, já estaria cometendo pleonasmo. Esterçar já significa girar bastante, e bastante é um sinônimo de muito. De uma hora para outra, conhece-se um palavra nova e pode-se cair no âmbito do pleonasmo vicioso.

O motivo de eu escrever o artigo de hoje sobre o pouco conhecido verbo ‘estrumar’ é que alguém me consulta se o uso estaria correto: “Estrumar os cachorros nos bois para trazê-los até o curral”.

Sim, estrumar é provocar o cão a fazer um ataque ou uma defesa.

Também, o cão é estrumado para pegar uma presa – ou pelo menos – espantar um bicho invasor do terreiro da casa, uma raposa, por exemplo, como pode acontecer no sítio. A disfarçada raposa, que desdenhou as uvas maduras dizendo que estariam verdes, por não poder alcançá-las (Esopo, La Fontaine), adora uma franguinha; estrumar o cão para afugentar o sariguê (pronuncie: sa-ri-güê, lembrando que o uso do trema acabou, mas a pronúncia da palavra permanece); esse marsupial também adora ‘uma jovem penosa’, ou estrumar o cão para pegar ou espantar o teiú, grande comedor da postura de galináceos no poleiro ou nas redondezas da casa da fazenda.

Sim, companheiro, estrumar é um sinônimo de ‘motivar’ o cão a defender a casa de seu dono, mas lembrando que o cão estrumado não é o cão que recebeu quantidade de adubo (para ficar gordinho) nem que um terreno estercado ou adubado seja um terreno ‘açulado’. Que bobagem é essa, professor!

Por outro lado, é salutar ver com bons olhos o uso regional de certos termos como entender a linguagem sem nenhuma maldade do homem simples, qualquer que seja o reduto de sua moradia.

E se pessoas com outro comportamento linguístico não quiserem usar ‘estrumar’, que outros sinônimos entrariam nessa caixeta destrambelhada? Eis a questão.

Antes de alguns exemplos nem tanto aceitáveis, registremos uma frase do célebre escritor Euclides da Cunha: “Esta péssima estreia do colosso proveio, principalmente, do açodamento com que o açulavam”. Açular, nessa visão, salvo melhor juízo, é enfurecer, exacerbar, excitar, irritar. Açular o cão, estimular, motivar, incitar. E caminhemos mais um pouco. Açular: fomentar. Fomentar o crescimento da indústria cobrando menos impostos. Açular: estimular. Estimular a produção agrícola. Açular: motivar. Motivar a população para que haja mais cultura e menos bens materiais, que levam ao consumismo exacerbado.

E agora, como ‘dar rédeas’ ao cão para que fique mais atento e defenda o patrimônio do seu dono? Tratá-lo bem, dar-lhe carinho, um bom alimento, desverminá-lo com o vermífugo certo. Começa assim, e o animal percebe isso.

Vamos açular o cão! Por favor, não confunda! Não vamos ‘azular’ o cão com maus-tratos. Não ‘açule’ seu cão a morder os indefesos ou quem não o está atacando. No País, há elevada estatística de mortes de crianças e idosos por ataque de cães não amestrados corretamente. Instigar, incitar, açular cães não é ensiná-los a atacar animais indefesos ou perseguir bichanos à porta de uma casa. Se é crime maltratar cães, é bem mais criminoso o dono do cão que o deixa à solta com a possibilidade de matar pessoas.

Particularmente, este colunista vem dizer que sofre de cinofobia, lembrando que o bom criador de cães, dóceis ou valentes, deveria ter boas atitudes com relação à cinofilia, cinografia e cinologia, demonstrando respeito aos outros.

O artigo ficou simplório, mas traz alguma informação útil.

 

João Carlos de Oliveira

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