A introdução ao comentário de hoje é uma frase eivada de regionalismo, em especial quanto ao aspecto semântico. O falar regionalista tem dimensões ainda não vistas em toda a sua grandeza, mas muito criticado, pouco levado a sério, tido como inadequado ou próprio de linguagem ágrafa.
Isso deve mudar. Não basta tratar-se de dialeto. Essa linguagem é um idioma dentro de outro, mesmo secundária, mas viva e com boas nuanças, que poderiam ser seguidas.
Professor jubilado, poeta, acadêmico, advogado, este blogueiro endossa o popular da cultura, fresta pela qual se vê outra face; a feira-livre formadora de opiniões, o falar de uma comunidade específica, daí a rapadura, o ouricuri, a comida típica. A cultura de cada lugarejo, mesmo individual, tem valor imensurável, fato relegado por uns, que querem destacar, apenas, o coletivo da elite ou de celebridades.
“Entonce, cuma é sua ‘frais’, professor?”
“Ô minino, vai lavar sua binga, que tá suja, seu porco! Tá cum cheiro de lama pôdi! Xô, criatura de Deus!”, expressão ouvida quando de idade tenra, embora não recaísse sobre mim mesmo.
Naqueles tempos, meninotes andavam pelados, com o bilau de fora, visto para quem quisesse olhar. Havia até o de tamanho escomunal, parecendo bengala…
O adjetivo estrambótico é raro no popular, ou não existe. O que se ouve é estrambólico, corruptela que pegou, tornando-se termo regional. O que a Gramática diz, e temos que segui-la? Que se trata de variante gráfica, mas isso é pouco. O que chama a atenção é o porquê da troca e da preferência.
Estrambótico tem cheiro de produto farmacêutico. Melhor o que nos faz ‘bem’, que ‘tá’ de acordo com o nível cultural de uma parcela que chamam de inculta. Admite-se que a incultura, se assim pode ser chamado o conhecimento prático de uma região, é também cultura.
No lugar de remunerado, remunerante, pois, de fato, faz o que deve, como pagante, edificante, preponderante, reinante, relaxante.
No lugar de paralisável, paralisível; de enfeitiçado, enfeitiçante; de permissivo, permissório, porque há investigativo, investigatório.
O mais de hoje é: enflamável, no lugar de inflamável. Por quê? De capa, encapar; de pacote, empacotar; de tarde, entardecer; de rico, enricar; de preto, empretecer; de nobre, enobrecer; de feitiço, enfeitiçar; de sabão, ensaboar; de pálido, empalidecer; de gordura, engordurar. Logo, encapante e encapável, entardecente, ensaboante, engordurante.
-En, prefixo, passa a -em antes de b e p: embebedar, empalidecer; a -e antes de n (nobre): enobrecer, como se vê. Por isso, de flama (chama), enflamar, e não inflamar, que criou inflamável, e seria enflamável. Esquecendo a origem latina inflammare, que dá inflamar, porque -in, prefixo, insinua o negativo, como em infalível, infatigável, imbatível, irrecorrível. Melhor a origem ‘interna’, ‘dentro do próprio Português’, como língua neolatina. A origem nova tem razões para a identidade própria.
No lugar de panorâmico, panoramísico, assim como paradísico, paralelo a paradisíaco, e hidrofóbico, ideológico. No lugar de fenomenal, fenomínico ou fenomônico, pois de feromônio, usamos feromônico. Um dicionário no meu divã registra ferormônio! Acredite!
Melhor isso que o excerto de uma crônica famosa, que alguns chamam famosérrima! O que é isso, cara? Por que criar adjetivo tão imponente, cheio de bossa?
“Os descontos que você tanto aguardava chegou“, sic. (Grifo nosso.) Por isso, ‘nóis num acredita’ em fala tão moderna, evoluída!
A discussão não gira no entorno de uma possível vírgula entre os dois verbos, mas ‘os descontos… chegou‘, como se vê. Foi lapso? Poderia ser, mas uma vez que se chega a usar ‘pandemia global’, ‘overdose acidental’, é preferível a fala regional: “As muié fica lá com as outa, i us hômi cá cum os véi” (determina o chefe da casa).
Estrondoso seria estrondótico, como morfético, narcótico. De endemia, endêmico; de epidemia, epidemiológico, logo de pandemia, pandêmico, como de permissão, permissivo e permissor; de promessa, promissor, promissório, já que temos investigativo e investigatório.
A troca de grafia seria comum, e, como lapso, fica perdoada. Num momento ‘cego’, troquei flagrante por fragrante. Redigi, e corrigi, corrigi, e não descobri. Um leitor me alerta; agradeci, perdi perdão e decepei o engano.
Momento em que se troca iminência por eminência. “Estou na eminência de ser chamado para tomar posse no cargo”, disse o aprovado. Não cabe o aspecto semântico de ‘eminência’ nessa frase (elevação, possibilidade?). E o cliente pede para a moça ‘corrigir’ o bilhete de loteria, no lugar de ‘conferir’, diferente de o cuidado com a grafia não perceber que ‘parceria’ ficou ‘parceira’.
Momento em que se troca subida por súbita. “Cumpade, tenho a súbita honra de receber vosmecê aqui em casa”, disse o anfitrião ao conviva. Fica correta a frase, mas alterado o significado de súbita. O compadre queria dizer ‘elevada, digna’, e não ‘inesperada’. Correta, gramaticalmente, mas semanticamente incabível para o contexto.
Atuei como secretário em certo município… Um funcionário de lá, enfronhado com a administração (eu apenas prestando serviço em cargo de confiança), usava com abundância “Temos a súbita honrosidade de receber Vossa Excelência no gabinete do Senhor Prefeito; compareça” (sic), que costumava colocar em ofícios do Prefeito para Deputados Estaduais.
Repentina tomou o lugar de elevada.
Ruim quando se ouve o intruso falar para outrem da fila: “O sistema acabou de sair fora do ar” (sic), que a Casa Lotérica estaria parada (‘avisou’ sem ser chamado).
Curioso quando alguém (sem conhecimento gramatical?) diz “Notou que eu tinha descobrido todo o malfeito dele”, de uma avó sobre seu neto. Mas essa mesma pessoa pode dizer que “A criança estava descoberta na cama, sentindo muito frio”. ‘Descoberta’, isto é, sem coberta, ou cobertor, porque seu corpo nada tinha para cobri-lo.
Descobrido, para dizer percebido, notado, visto; descoberto, ‘sem o cobertor, ‘sem proteção a dormir’. Usou-se muito uma espécie de cobertor simples, barato, de lã meio escura, chamado ‘dorme-bem’, popular no Nordeste. Ainda hoje?
Se ‘descobrido’ é sinônimo de notado, confirmado, ‘descoberto’ o é para o desamparado. O saldo está a descoberto.
A cultura popular tem tais aspectos, embora a Gramática Normativa diga que o particípio passado de descobrir é descoberto; que não se trata de verbo ‘abundante’ (que tem dois particípios ou duas formas verbais). De comprazer, ‘comprazi’ ou ‘comprouve’; ‘comprazera’ ou ‘comprouvera’; ‘comprazesse’ ou ‘comprouvesse’; se você se ‘comprazer’ ou se ‘comprouver’.
Não só o fato de haver ‘acendido’ e ‘aceso’, ‘absorto’ e ‘absorvido’. Construir é abundante, e pouco conhecido nestas duas formas: constrói e construi; construis e constróis (não importa a ordem); construem e constroem. Pode-se admitir destruo e destroo, construo e constroo?
Não a troca de sanguíneo por sanguínio! O chato é que o dicionário dar lipídeo e lipídio. E agora? Sulfúreo não varia para sulfúrio.
As congruências linguísticas de variantes gráficas, etimológicas a semânticas são diversas.
No caso de ‘estrambólico’ no lugar de estrambótico, este pouco usado e conhecido, pode haver engano etimológico, e risco semântico.
Uma frase de importante texto sobre paranoias da vida atual diz “Exceto àquelas que possuem teor alcoólico”. O escrevente descumpre a norma, uma vez que ‘aquelas’ funciona como sujeito, não podendo ser termo craseado: Exceto aquelas que possuem teor alcoólico.
Grafias incorretas anti-ronco e anti ronco, no lugar de antirronco.
‘Não foi informado as circunstâncias do acidente’, de um texto. Preferível a linguagem popular que prima por ‘Não foi feito todos os trabalhos’, ‘Não foi enviado os documentos pedidos’.
E, agora, quais os seus adjetivos ‘novos’?