Não. Não pode.
‘Cada’, pronome indefinido, de gênero neutro, que não tem plural, refere-se a pessoas, coisas, objetos, ou àquilo a que o usuário faz referência como parte de um conjunto.
Cada pedaço de chão na caatinga é de valor extraordinário. Cada casa nesta vila tem um colorido interessante.
Seu uso abrange o popular, culto, erudito, literário, poético etc., não importando o nível intelectual do falante ou escrevente; certo é que, mesmo pequenina, com quatro fonemas, e igual número de letras, com duas sílabas apenas, vocábulo paroxítona, essa palavrinha circula livremente em todas as áreas culturais, científicas, históricas, e outras, com muita desenvoltura, sem se ostentar, sem se preocupar com olhares pejorativos.
Todos a usamos, todos a conhecemos, todos a sabemos pronunciar. E ela, a palavrinha, e ele, o pronome, têm vida longa, já é vetusto(a), vindo do Grego kata, passando pelo Latim cata, chegando a nossos dias intacta, cuja grafia e pronúncia se assemelham tanto no passado como no presente.
Correspondente ao nosso ‘cada’, o Inglês tem every, each; o Francês, chaque; o Alemão, jeder; o Italiano, ogni; o Espanhol, cada.
Quando a ironia bate à nossa cachola, respondemos a algo de que não gostamos: “É cada uma! Sai dessa, cara! Vai-te catar!”, e damos um quebra de asas para afastar o chato ou intruso.
Na frase encontrada, falando de futebol feminino, À cada pessoa (é dada uma função), em que a segunda parte é fictícia (entre parênteses), a crase não tem fundamentos gramaticais. (Grifo nosso.)
Pode ser que o leitor a tenha visto ou a encontre por aí, ou alguma similar. Bom saber que o ‘a’ que a pode preceder não é artigo, mas a preposição ‘a’, tradicional e comum. ‘A cada um de vocês dou um presente sagrado, um naco de rapadura da boa, para ser degustado com farinha e carne-seca do sertão. Querem algo melhor?’, disse o anfitrião em tom de brincadeira ao receber convidados para uma sessão de cantoria e samba de roda em Muritiba, cidade do Recôncavo Baiano.
Para haver a crase costumeira, é necessária a presença da preposição (a) e do artigo definido feminino, singular ou plural, ‘a(s)’, antes de palavra feminina, no singular ou plural, ocorrendo a fusão de a+a(s) para formar à ou às. Vou à missa todos os dias. Fomos às romarias de todos os anos.
Não é possível o uso de ‘a’, artigo feminino, antes de cada: a cada. Estranho esse uso como artigo. Se a regência verbal ou nominal exige a preposição ‘a’, uma vez que ‘cada’ tenha aceitado o artigo ‘a’, assim se daria a crase. Mas a redação com artigo não existe. Se a regência exigir, haverá apenas a preposição, sem haver crase.
O exemplo citado neste comentário deve ser grafado simplesmente assim: A cada pessoa é dada uma função.
Cada um de vocês vai fazer o que mando, diz o coronel a seus subalternos, com a ordem de que ‘quem adentrar seu casarão sem permissão’ será amarrado ao mourão de baraúna, como nos tempos do pelourinho; se reclamar, a pisa será mais robusta. (Hipótese contada em anedotas.)
Essa uma frase típica de quem interpreta o Coronelismo no Brasil na década de 1930. Esse tormento político já acabou?
Cada um de nós, no dia a dia, vive o receio da violência.
Cada funcionário da empresa usa o crachá personalizado, com dados de sua função.
Cada cidadão tem sua visão de vida, e não podemos desrespeitar suas opiniões, mesmo que não as acatemos ou as sigamos, diria uma pessoa moderna com olhares ecumênicos, sociais e democráticos.
Cada pessoa que faz compra maior que cem reais ganha um presente. A cada pessoa que faz compra acima de cem reais é dado um presente.
O dicionário nos diz que ‘cada’ significa ‘todo’, totalidade tomada separadamente dentro de uma série ou grupo. (Ótima definição: o total de uma série ou grupo, algo para se entender, o que vem a ser uma ‘parte’. Por isso, as frases são curiosas: em cada dez pessoas, uma sofre de coluna.) Em cada série de dez pessoas, uma sofre de coluna.
Observe o leitor que ‘cada’, se vem antes de dez, numeral ordinal no plural, pode vir antes de um, uma, centena, mil etc. ou palavra tanto masculina como feminina.
Veja, pela ordem, frases com essas possibilidades.
A cada um de vocês um abraço. A cada uma das pessoas uma prenda. Em cada centena, um número incerto de doentes morre nos hospitais sem o devido atendimento. Em cada mil reais recebidos, havia uma nota falsa entre elas. A cada menino damos um chocolate; a cada menina, uma rosa vermelha com uma guloseima.
Ainda há o uso de cada seguido de outro pronome: cada qual, o mesmo que cada um, equivalente a cada pessoa ou coisa. Veja a bonita frase de um léxico: Aqui, cada um (cada qual) cuida do seu.
No modo de falar e escrever, mude a ordem dessas palavras: Aqui, cada qual (cada um) cuida do seu. Cada qual, aqui, cuida do seu. Cada um, aqui, cuida do seu.
O Dicionário Prático Ilustrado, editado por Lello & Irmão Editores, em Porto, Portugal, de 1956, com que muito aprendo no cotidiano, comparando o vetusto com o hodierno, registra sobre o pronome cada: pron. indef. (gr. katá). Indicativo de que os objectos que constituem um todo se tornam ou consideram distributivamente, um a um, ou grupo a grupo: cada coisa tem o seu lugar; cada homem tem seu sistema.
(Algo similar a se dizer hoje ‘Cada coisa tem sua finalidade, cada louco tem sua mania.) Cada um com seu jeito de pensar.
Essa uma forma explícita de definir ‘cada’, que não carrega semântica ao pé da letra, como se fosse ‘A Torre Eiffel é o maior ponto turístico de Paris’, mas satisfaz a mente do curioso, dando dicas de como pode ser usado, além de aprendermos no dia a dia com a linguagem popular.
Esse dicionário acrescenta ainda: cada vez mais (progressivamente); cada um, cada qual (homem por homem, coisa por coisa, por unidade, por cabeça, por grupo).
Analise os dizeres: cada qual é para o que nasce; cada qual com seu igual (o que, além da rima, tem um sentido especial, metafórico, é certo, mas que dá para entender).
Esta frase seria bíblica: Dá um pedaço de pão a cada um.
Rasgadamente, diríamos: Um pão a cada um (a cada uma, para cada um(a). Quem quiser mais, que vá trabalhar.
A cada pessoa damos um crédito diferente. Ao açougueiro, dizem que sabe abater animais; ao médico, que sabe cuidar das pessoas; ao professor, que sabe intermediar o que o Mundo nos ensina; ao comerciante, que sabe vender os produtos. Aliás, a boa loja, de qualquer natureza, só sobrevive se seguir a linha do B três vezes, os 3 bês: bom produto, bom preço, bom atendimento. O resto é balela, ou marketing enganoso dos tempos modernos.
A cada um de vocês, meu abraço por ter chegado ao fim deste texto.