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A linguagem regionalista é muito bonita, com toda a sua informalidade

Informal e espontânea. Simples e autêntica.

Poderíamos classificá-la com um sem-número de adjetivos, voltados à sua beleza e pessoalidade.

Que tal, nos primeiros alvores da manhã, ouvir-se o vizinho cumprimentar o outro com aquela espontaneidade:

Cumpade, cuma vai? E sua senhora? Todos estão bem?

Estamos bem, cumpade! Com as graças de Deus!

Além de tudo, é empática, pois cada um gosta de ouvir o outro, respeita-o, deixando fluírem as ideias, os conceitos, os pontos de vista, as opiniões.

Aliás, algo importante no relacionamento humano, mesmo que se discorde do que se pensa e diz, é o companheiro respeitar a opinião do outro (ainda que não concorde com o parecer do cidadão).

Vem a pilhéria, aquela versão do pitoresco ou hilário, em que uma anedota flui como a água do ribeirão ultrapassando as beiradas naturais, e o engenho bem longe dispersando a fumaça branca, não-poluente, no fabrico da rapadura, do açúcar regional, meio escuro, mas saudável, da cana pura, da java ou outra, a caiana, todas de boa qualidade. Pode até haver o açúcar mascavo, fabricado no Nordeste há muitos anos, fato que alguns desconhecem.

Reza o amigo que o outro viajava de um lugarejo para o outro a pé, sozinho, numa distância de 3 léguas (ou 12 km).

Lá vai ele, assobiando, para espantar o medo. Tudo escuro como breu.

No meio do caminho (sem ser o verso de Drummond), surgiu-lhe uma imagem estranha, ou uma visagem.

Parou, os cabelos da cabeça arrepiaram, e ficou trêmulo.

O que será? Uma onça? (Ainda, tem essa bicha por aqui?, ele se ‘pregunta’).

E admitiu, sim, que era uma delas. Como vou fazer? Se eu ficar, ela me pega. Se correr, ela me come. Tô no mato sem cachorro.

Minuto depois, mesmo sem enxergar direito, picou fumo e fez seu cigarrinho na palha de milho, que sempre carregava no bolso esquerdo da calça de brim azul. Só tinha aquela, e mais algumas calças curtas do trabalho diário, pois o dinheirinho suado não dava para comprar muitas peças, além de ter que pagar caro para a costureira Dona Roxa, muito boa para fazer camisas de manga comprida, mas não cobrava barato.

De gente de posse, ela cobrava um conto de réis, e olha lá se ‘num’ fosse mais.

Então, o viajante Galdino começa a fumar seu cigarro de palha, saboroso, até a hora de a fera ir embora, à procura de um companheiro, ou companheira, ou caçar um veado caatingueiro distraído.

Sentou-se, fumando sua ‘distração’ cotidiana, e veio a dormir. Estava cansado.

E não é que a noite chegou ao fim. Acordou com os alvores da manhã nordestina, e o céu já azulado.

Olhou, olhou, pensou, e nada viu. Cadê a onça? Não tem onça aqui, não, senhor!

Espantado, deu uns passos, e chegou ao ponto em que a bichana valente estaria, mas viu foi um toco de braúna, que estava ali há muitos anos, desde os tempos de seus pais.

Tinha-se esquecido desses detalhes.

Seguiu viagem e chegou a seu destino.

E agora? Como ‘expricar’ à sua senhora porque não chegou à noite. Chegar de manhã num percurso tão curto, se o caboclo costuma caminhar até 5 léguas por dia?

Não sabemos como se saiu perante a família, mas alguém duvidou de sua história, porque entre Cachoeira Grande e Riachão (hoje, Itaitu, distrito famoso e turístico), no Município de Jacobina, Bahia, não existe mais onça. Dizem alguns mais antigos que seus pais falavam em onça parda, a chamada suçuarana, um pouco menor que a onça-pintada, mas também valente e perigosa.

Hoje, não tem mais. Morreram todas, ou as mataram com cartucheira pesada, ou até de pau, acuadas pelos cachorros magros e fortes, um trigueiro, outro perdigueiro, um vira-lata, e os cachorros Valente, vermelho, e Guarani, rajado, os mais fortes do fazendeiro Pedro Manuel Otaviano, apelidado Seu Pedro.

Os amigos diziam que aquele cabra da peste, um trabalhador braçal, com um defeito ocular e outro nas narinas, falando fanho, o fanhoso, por isso, chamado ‘fonhém’, era um grandíssimo mentiroso, ou medroso de mijar nas calças, quando via uma visagem ou o lobisomem rondando a igreja matriz, sempre com as portas fechadas, só abria de dois em dois meses quando vinha um padre de Miguel Calmon, Piritiba ou Mundo Novo, para ‘dizer’ a missa, e todos ficavam de joelho, mesmo os que não estavam na igreja, passando na rua em frente, na hora do Senhor-Deus, a oração forte do nordestino, e quem a reza, Deus ajuda.

Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Amém! Para Sempre Seja Louvado!

Sim, foi tachado de mentiroso, e pronto, por alguém que morava numa casinha à beira da estrada perto de onde ele disse que tinha visto a onça, mas era o toco, que pode ser comprovado.

Naqueles dias, um amigo podia chamar o outro de ‘veado’, mas é uma brincadeira, o que quer dizer ‘Você é meu grande amigo’.

Quanto tempo não te vejo, seu veado! Tu tava aonde?

Rapaz, o cara lavou a égua! Num é que jogou na loteria e acertou! Tá rindo à toa, com a boca sem dentes escancarada.

O outro conta uma piada sem graça e diz que o fato, de fato, foi verdade. Seu mentiroso! Você é um sacana! Fica dizendo que a mulher ‘sartou’ a cerca, mas fala assim porque não se deu bem na sua cantada. Seu descarado! Filho de uma que ronca e fuça!

O amigo foi narrar o que não sabia, inventando, e perdeu o fio da meada. Salafrário de uma figa!

O gato deu uma miada com medo da cobra cascavel que passava no terreiro, para ir à beira do brejo pegar um preá, já que não almoçou o mocó no alto da serra, local cheio de pedras, e alguns mocororôs tão vistosos como barro vermelho.

Na família, nasceu um menino com a pele amorenada, um caboclo moreno, já que as irmãs tinham a pele mais clara. Sabe o nome que ganhou? Preta.

Preta, seu pai tá chamando ocê pra buscar água no tanque, no burrinho, com os carotes bem cheios.

Uma moça bonita, alegre, fanfarrona, comunicativa, descendente de descendência italiana, por ter nascido com a pele um pouco escura e os cabelos negros, também é chamada Preta. Essa minha amiga de Linhares, no ES, aceita desde pequena ser chamada Preta, mas seu nome é outro, bem diferente desse apelido, um hipocorístico, como se chama alguém de Nininha, Detinha, Dulcinha, Minzinho, Mano, Diezinho etc.

O menino Preta é de Aroeiras, na Paraíba, onde há muitos descendentes de holandeses da quinta geração de pele bem clara e olhos azulados, mas queimados de sol, o Sol escaldante.

Prefiramos essa linguagem ao internetês desvairado, sem pé-nem-cabeça, que distorce a linguagem, e pode fazer dela um emaranhado de palavras sem nexo, com grafias estranhas.

Veja onde vim amarrar a minha mula catrava, e me dei mal.

Benza a Deus, meu filho, você é um rapaz sortudo.

Não me aperreie, viu, seu sujeito sem-o-que-fazer. Vá catar milho no paiol.

Oxente!

Com todo o defeito, se é que isso tem sentido, a linguagem popular é ótima, boa companheira das horas simples, sem formalidades, e mesmo o homem culto faz uso dela em casa, no bar, na palestra com os amigos. Palestra é bate-papo, supimpa, arretado de bom, como diz o soteropolitano.

Rica, variadíssima, dela advém uma variedade incrível de vocábulos, como poetizou João Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, ou Ariano Suassuna em suas várias obras, e mesmo João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina.

Taí. Esperamos que goste de nóis, porque nóis é assim, e não vamos ao pote com muita sede. É preciso cautela.

Nóis vai viajá amanhã, sim, senhor!

Nos aguarde na próxima.

Ops! Uma ressalva: a linguagem que propaga o individualismo em prejuízo do coletivo não seria ideal. Você pensa assim?

 

 

João Carlos de Oliveira

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