‘Qual a fôrma do sapato’? ‘Qual sua forma’? Essas frases são usuais? Deixam dúvida?

Fôrma e forma: homônimos homógrafos (mesma grafia), pronúncia distinta (fechada, aberta), com significado próprio. Os homônimos homógrafos fechados perderam o acento diacrítico: o govêrno passou a ser o governo (eu governo); êle (pronome) tornou-se ele (ele, nome da letra L); tôda (pronome indefinido), toda (toda, pequena ave da fauna africana); o mêdo, agora, o medo (pavor), (medo, povo antigo, ou aquele da Idade Média, medieval). Mas mantêm a prosódia diferenciada, como em o acordo (fechada), eu acordo (aberta).

A atual Reforma Ortográfica eliminou o acento gráfico de alguns vocábulos, mas pode haver dúvidas, em especial, para os aprendizes, que precisam receber orientação sobre prosódia: baleia (pronúncia fechada, sem acento circunflexo), geleia (aberta; perdeu o acento agudo). Há uma boa lista nesse aspecto: ateia, teia, colmeia, assembleia, cadeia, permeia (verbo), plebeia. Grande parte do estudantado desconhece que o pronome reto ele foi acentuado para justificar a pronúncia diferente de ele, nome de letra. O professor da área de linguagem sabe que ‘plateia’ e ‘pranteia’ podem deixar dúvida quando comparados com assembleia e pleiteia, e que dói, rói, papéis, coronéis, por exemplo, permanecem com o acento gráfico.

Se, conforme a regra, alguns vocábulos perderam o acento gráfico (para, verbo; voo, verbo e substantivo), homônimos há que oferecem incerteza: a forma verbal ‘pode’, no presente, deve ser diferenciada de ‘pôde’, no pretérito, para o bom uso desses vocábulos, semântica e linguisticamente. Não foi possível a retirada do circunflexo. Se usamos ‘Você pode fazer isso?”, certamente, estamos referindo-nos ao presente do indicativo. ‘Você pôde fazer isso?’ indica que o tempo verbal é o pretérito perfeito do indicativo. A frase ‘Ele não pode vir’ é extremamente dúbia. Vale o contexto, mas, sem o acento circunflexo, fica claro que o falante antecipa o fato: ‘ele não vai poder vir hoje’. Com o acento, ‘Ele não pôde vir’, a semântica nos leva a analisar que o usuário quis dizer que não foi possível alguém ter comparecido em data anterior. Pode, presente; pôde, passado perfeito: a Reforma Ortográfica não teve a ousadia de eliminar esse acento diferencial.

‘Pára’, forma verbal, perdeu o agudo; agora, é para. Não se confundiria com ‘para’, a preposição? Analise os enunciados: Quando a milícia chega para tudo. Para tudo, a milícia chega. Há dúvida? E estes? A milícia para tudo. Há milícia para tudo.

Pôr, verbo, e por, preposição. Tiraram o acento, mas pode permanecer a dúvida. Vamos por a casa em ordem. Vamos por aqui. É preciso diferenciar: ‘Vamos pôr a casa em ordem’ (organizá-la). ‘Vamos por aqui’ (passar por este lugar). ‘Vamos pôr aqui’ (colocar o objeto neste lugar). Usado o acento circunflexo, a dúvida desaparece: Vamos pôr aqui (que fica mais seguro). Vamos por aqui (que é mais perto).

Toda a demora serviu para chamar a atenção de que o sinal gráfico em Português é o bastante para diferenciar a pronúncia e o aspecto semântico de muitos vocábulos, antes e depois da vigente Reforma Ortográfica. Muita mudança pode ser ruim.

‘Fôrma’ do sapato é o tamanho. Número 38 (para os brasileiros). A ‘forma’ do sapato é o seu aspecto, o seu formato (bico fino, bico achatado etc.).

Uma empresa edita um livreto para orientar o usuário que adquire sua assadeira de pão, que a chama de ‘forma’ de assar pão (marca Blíndex, nome fictício). A todo instante, define e caracteriza o produto (que seria ‘a fôrma’), mas deixa dúvida: ora usa o acento gráfico, ora não usa. Houve esquecimento do redator ou teve dúvida quanto à necessidade do acento circunflexo? A redação ficou prejudicada.

Informa o dicionário: 1. forma (sem usar o acento circunflexo, mas simbolizando a pronúncia fechada): ‘peça de madeira com a feição do pé, empregada na confecção de calçados’. ‘Vasilha em que se assam alimentos’ (o que seria uma ‘fôrma’ de assar pão). Observada a clareza, o acento diacrítico deve estar presente para evitar dúvida, além de o usuário estar atento à pronúncia fechada do vocábulo. 2. forma (também sem usar o acento gráfico, ficando a critério do consulente interpretar que a ausência do acento indicaria a pronúncia aberta): ‘maneira de ser; feição externa; aparência’.

Forma é um vocábulo polissêmico. Muito popular, deduzimos que seja a maneira como vemos a vida, qual a visão que temos dos fatos, qual a compreensão que temos de tudo diante de nós. A peculiar expressão de cada um dizer o que pensa (maneira de exprimir o pensamento); a condição física de uma pessoa, ginasta, atleta; o modelo de um objeto. E o plural de cada vocábulo? As formas: os contornos, as linhas exteriores; as aparências; os espectros. As fôrmas: as peças que nos dão a ideia de tamanho; as assadeiras de pão e outros alimentos.

Finalmente, mantenha os sinais gráficos: pôr (verbo), pôde (pretérito perfeito), fôrma (tamanho, assadeira), pára (verbo).

Se não seguirmos esse critério, a clareza se perde diante de nossos olhares.