Parece clichê comercial, tantas as vezes em que se ouve, no cotidiano, este eslôgan moderno: pague a prazo pelo preço de à vista, que vendedores usam sorridentes. Um modismo ‘incrustado numa linguagem limpa, politicamente correta’?
Sabe-se de onde tiraram esse trunfo? Da manga da jaqueta de um mágico?
Preço a prazo. Preço à vista.
O primeiro critério em duas ou mais vezes. O segundo, ‘na bufunfa’. Nada mais.
Aliás, de bom alvitre, lembrar outra pérola da linguagem do marketing: Pague em até 12 vezes (sic). Grifo nosso.
Em até? Por que duas preposições seguidas (uma após outra) no mesmo contexto, tão curto que é?
Não ficaria claro o número de vezes em outro dizer?
Se a prazo, em tantas vezes! Pague até 24 vezes (de duas a 24). Pague em 24 vezes (quantidade pré-determinada).
Até, preposição que indica possibilidade, hipótese, tempo ou distância, limite ou fim, conforme o modus operandi de cada um, indicando que podem ocorrer (de) duas ou mais vezes: até 6 x, até 10 x, até 12 x, até 24 x.
A laje suporta até mil quilos de peso. Vai a pé de casa até o local de trabalho.
Em, preposição que preconiza lugar, tempo, modo, estado, fim etc.; no caso de prestações, estabelece um denominador aceito.
A compra foi feita em dez pagamentos.
O xis (uma incógnita) pode ser o sinal matemático de vezes, por isso nem sempre escrevem a palavra vezes.
Bela preguiça ou comodismo, que, em outro contexto, poderia gerar linguagem ambígua.
A linguagem comercial evolui desordenada? A ânsia ‘poética’ de vender gera dúvida?
Sabe-se que dói o embuste R$ 14,99. E cadê o troco?
Incomodam R$ 15,00?
Como explicariam R$ 99,99?
Certamente, haveria vendedor que justificasse que ‘não’ são R$ 100,00! Acredite!
O comprador é que deixa para lá; sim, nós não questionamos essas cifras. Estaríamos comprando mais barato com o valor R$ 14,99?
‘Seu João, vamos deixar essas desgrameiras pra lá”, como diria Josué, caboclo arretado, nervoso, que não sabe ‘recramar’.
O pastel não custa um Real, mas tão somente R$ 0,99!
Má propaganda?! Uma farsa e uma burla, a má-fé ‘em pessoa’, tão clara como a enxurrada a descer o morro, levando tudo de roldão, numa linguagem enganosa.
Quem quis inovar, inventou em até.
Ou sabão em pó ou sabão em barra. Um sabão com essa dupla face, a um só tempo, é tapeação, que nem galo cego engole mocororô, o freixo rolante, pensando que seria um grão vermelho do milho doce, lá da fazenda do Garajau, de Pai Dindinho, meu avô materno, trabalhador, cuja foice tinha cabo de madeira de dar em doido, pau-pereira fornido, tirado com cuidado, no capão de mata mais próximo, tantos eram os pés de pau-pereira que ‘tinha’ na região.
Assim como a Gramática ensina a usar ‘em mão’ (estar com o documento em mão, prontinho); a dizer ‘estar em dia’ com sua obrigação (não ser inadimplente ou velhaco); estar a par das coisas (ser bem informado); estar na direção certa (seguir um rumo correto de uma caminhada na vida), e outras, pelo preço de à vista já foi recomendada por uma gramática, uma sequer?
Não se conhece isso. Compulsando mais de 20 Gramáticas Normativas, desde a do saudoso Celso Ferreira da Cunha, ‘Nova Gramática do Português Contemporâneo’ (que já estaria defasada?), esse conselho não é evidente.
Natural de Teófilo Otoni, MG, Celso Cunha foi professor dos bons, filólogo, ensaísta, funcionário em vários órgãos federais, em especial, no setor educacional, e membro da ABL, que diria: “Jamais vi uma expressão tão ruim quanto essa!”, com a devida vênia.
Filho de Tristão Ferreira da Cunha, cuja história é viva nessa cidade das Pedras Preciosas, sua vida cultural merece atenção e pode ser analisada em vários momentos na Internet.
Se um mau funcionário presta ‘desserviço’ ao setor público, mancadas que alguns praticam, loas carregadas de má-fé, essa expressão, aprendida ninguém sabe onde, quando, com quem e por que, vem invadindo os dizeres de alguns.
“Vou estar atendendo o senhor agora mesmo” (enquanto faz o quê? Vai ao banheiro, usa o celular? ou embroma?), e chegaria sorridente: “Essas ceroulas custam dez Reais o par; com desconto de 10%, o senhor paga (viu, ‘meu tio!’), 9,00 e leva a prazo para pagar pelo preço de à vista em até 12 vezes”, sic, diz o atendente.
Para começar, se está mostrando o produto, se o tem em mão, são ‘estas’ cuecas, modelo novo, que não são as tipo ‘samba-canção’ de outrora, em que o bilau ia de um lado para o outro, e poderia causar constrangimento.
Alguma jovem usa o termo ‘anágua’, e usa a peça? Um mancebo usa ceroulas? Uma cabrocha usa um vestido de chita amarela? Um rapazola se veste de brim gabardine?
Se fosse lógico o uso de ‘pelo preço de à vista’, deveria alguém ‘poder estar usando’, ao atender o cliente, ‘pelo preço de a prazo‘.
Seria ideal estampar numa tabuleta, em frente à loja, “Vendemos à vista pelo preço de a prazo”? “Vendemos a prazo pelo preço de à vista”?
Se ‘de à vista’ tem sentido, ‘de a prazo’ também o teria!
As expressões recomendadas com relação a preços e a vendas, entre outras, seriam as mais comuns: preço a prazo (sem crase porque ‘a’, preposição, vem antes de s. m.;); preço à vista (com crase em que a preposição ‘a’ se contrai ao artigo feminino ‘a’, que precede a palavra vista; a+a, à). E mais: preço a varejo, preço de fábrica, preço de venda, preço de revenda, preço de compra, preço de tabela.
O vício de linguagem é um mau serviço à sociedade que critica erros de Português do mau usuário. Não se pode seguir o modismo apenas pelo fato, ou o hábito, de que tudo ‘pode’ desde que se entenda o enunciado, ou por que todo mundo fala assim.
Não se pode a bel-prazer usar o que der na telha e culpar a Gramática pelo erro, como se todos varressem o lixo para a boca de lobo e culpassem a chuva pelos alagamentos, ou a Prefeitura, omissa e desleixada, vivesse a descumprir princípios legais. Quem estaciona em mão-dupla enxerga ‘vários Códigos Nacionais de Trânsito’, e um seria o seu, eis que não cometeu infração.
O comportamento humano tem faces inexplicáveis. Não se contrata um analfabeto para ser representante comercial. Como contratar uma locutora, apenas de voz possante, se comete erros linguísticos crassos? Os barbarismos estão em evidência, e quem os comete é tachado disso e daquilo, logo, o erro crasso de linguagem deve ser levado em conta.
A manchete diz que uma pessoa foi encontrada na trilha ‘morta’. Que se dissesse ‘encontrada morta na trilha’ para não haver anfibologia, a ambiguidade, que dá duplo sentido.
Eis que estamos aqui.