O dia a dia, demandado pelo corre-corre, nem sempre permite a todos a parada para rever algum conceito gramatical.
Os dias se passam, e nesse diapasão cada um confia em seu próprio conhecimento, mas pode surgir algum lapso.
Multiúso, com acento gráfico (o agudo), ou sem ele, multiuso, como mais se vê?
Para um caso ou outro, certo é que a pronúncia da palavra não muda (em) nada, ou teria leve diferença.
Separe-a em sílabas: mul-ti-u-so (sem o sinal gráfico); mul-ti-ú-so (com o sinal).
Fonologicamente, ficou a mesma coisa.
Tenho-a encontrado sem acento, mas pondero, hoje, depois de muitas consultas e análises, que o sinal gráfico faz parte da regra, por se tratar de um hiato: i-u, assim como em sa-ú-de, sa-í-da, Iúna (pássaro, e cidade capixaba), cabriúva (árvore de grande porte), craúna (pelagem de animal), cuíca (instrumento musical e espécie de marsupial), caía, Itaú.
Dois exemplos chamam a atenção: a forma verbal reúsa, do verbo reusar, em que temos o hiato ‘verdadeiro’: a vogal u, forte, deve ser separada da vogal e (anterior). A palavra feiúra teria um hiato ‘frágil’, pelo fato de haver antes do u tônico (acentuado graficamente) uma semivogal (i), no ditongo decrescente ei (fei-ú-ra), com três sílabas.
Isso por que a regra diz que o hiato é o encontro de duas vogais pertencentes a sílabas diferentes, pronunciadas sucessivamente, isto é, uma após a outra. Em outro momento, a regra diz que as vogais de um hiato são pronunciadas em emissões sucessivas de voz; não é uma aqui e outra lá, mas as duas seguidamente: uma após outra.
O hiato formado de semivogal com vogal, feiúra, difere do existente em cafeína (ca-fe-í-na).
O vocábulo hiato vem de hiatus, do Latim, que por sua vez se forma de hiare, abrir a boca. A forma de pronunciar é que forma o hiato. Isso fica claro.
Pronuncie pausadamente estas palavras: Luzia (hiato sem acento gráfico), ia, saúva, cueca, Raul, egoísta, Heloísa, cair, saiu, juiz, juíza, ainda, rainha, joelho, coelho, coentro, atraí-lo. Não se separa sa-i-u, mas sa-iu, em que i é vogal; u, semivogal. Compare com fei-ú-ra. Na palavra meio não há hiato, mas ditongo decrescente (mei-o), embora o i se estique um pouco, mas não se fala me-io.
Para uns, portanto, seria hercúlea a tarefa de observar se hiatos são acentuados graficamente ou não. A pronúncia não se preocupa com esse detalhe, embora o acento gráfico seja norteador.
A vogal do hiato é acentuada quando está sozinha ou seguida de s: sa-í, sa-ís-te (dois exemplos claros). Se a vogal estiver seguida de nh (tainha, bainha), r (sair, cair), z (raiz, juiz), l (pa-ul, brejo; Raul), n (a-in-da), não deve ser acentuada.
Observe a pronúncia de ciúme, Raíssa. Compare que juiz (i seguido de z) não leva acento agudo, mas ju-í-zes (sim), porque o i está sozinho.
O antropônimo Raissa, de origem grega, costuma vir sem o sinal gráfico (Ra-is-sa), mas a regra ampara essa falta: o nome próprio de pessoa pode vir sem o acento gráfico, embora tenha sua pronúncia normal: ninguém iria pronunciar Rais-sa, com duas sílabas, mesmo que alguns digam Mai-ra ou Ma-í-ra.
Pela Reforma Ortográfica, os hiatos ee e oo perderam o sinal gráfico, pelo motivo ‘simplório’ de desejar diminuir o número de sinais gráficos na Língua Portuguesa, que foi aceito no Português do Brasil e gerou polêmica no Português de Portugal e outras Nações. A pronúncia deve ser mantida: de-em, le-em, ve-em, vo-o.
Em sa-em há o hiato (a-e) e, ao mesmo tempo, o ditongo descrente em, com a pronúncia ei anasalada.
Grafava-se co-autor, co-piloto, microondas, co-réu; hoje, coautor, copiloto, micro-ondas, corréu. Num processo jurídico, foi grafado ELE, CORREU (maiúsculas, sem acento), com o risco de se entender a forma verbal de correr: ele correu, mas o corréu, o réu que participou do crime, junto com outro.
Assim, multiúso, como reúso, reúsa. Saída, faísca, Fiúza, espadaúdo, suéter.
O hiato, pois, é o conjunto de duas vogais em contato, pertencente cada uma a sílaba diferente. Miúdo, Suécia, Suíça, Beatriz, heveena (hidrocarboneto líquido, extraído da destilação da borracha, como diz o dicionário; citado por ser diferente). Figuradamente, hiato é intervalo, interregno, espaço de tempo, lacuna, fenda da terra. Etc.
Quanto a querosene ser palavra feminina, embora o dicionário diga o querosene (s. m. líquido incolor ou levemente amarelado, extraído do petróleo bruto), talvez, seja pela influência de que, em Grego, querosene é keros, que seria uma cera. Haveria a influência para ser adotada como palavra feminina? Seria mais bonita assim? Sabe-se que em período histórico do idioma havia dúvidas quanto ao gênero de muitas palavras, e algumas pessoas usam-na assim: a querosene. Artigo recente sobre ‘o’ querosene de avião registrou ‘a’ querosene. Teria sido um lapso ou o redator a usa como variante feminina?
Certo que pode surgir a dúvida: o quepe, a quepe; o aluvião, a aluvião, e a Gramática Normativa aceita o diabete, a diabete.
O crisma (óleo perfumado que se usa na crisma); a crisma (sacramento religioso que confirma o batismo). O cisma, a separação do corpo; a cisma, a dúvida. A lente, peça de vidro ou de substância refringente (…) utilizada para formar imagens ópticas; o lente, o professor. O tapa, a tapa (de modo geral, o murro que se dá com a mão aberta em alguém). O personagem, a personagem (não importa homem ou mulher; apenas, o, a intérprete de um texto teatral, de novela ou filme, alguém que faz parte de uma história). O trama, a trama, o mesmo que a conspiração, o conluio. No ambiente campestre, diz-se o preá ou a preá, não importando se o macho ou a fêmea. O dicionário diz ‘o’ sabiá (a ave canora), criadores dizem ‘a’ sabiá, para o macho ou para a fêmea.
O assunto é delicado, e o linguista explicaria melhor esses casos. Nós os comuns devemos seguir o que determina o compêndio escolar. O Inglês moderno é idioma que não tem palavras masculinas, femininas ou neutras, como explica o professor dessa área. Digamos que em Francês a palavra mesa seja um masculino, le table. Em Italiano, é masculina: lo tavolo. Uma palavra feminina em Português pode ser masculina em Castelhano ou no Alemão, e vice-versa.
O melhor de tudo é que respeitemos as tradições dos idiomas e que saibamos usar o Português de forma plural, sem chiliques nem ‘tique-taques’ explosivos.
Para fechar, abraços ao professor Jairo, no Distrito de Cachoeira Grande, em Jacobina, Bahia. Continue, mestre, com toda a sua dedicação à boa causa educacional e com o amor aos seus pupilos. Parabéns.
Fica assim.