Falantes há que maltratam bastante o idioma; vir está quase morrendo de tanta pancada. De quem é a culpa? Dele mesmo, um verbo anômalo, ou dos usuários? Patrimônio do povo, o idioma diz muito da sua cultura e tradições, e bem usado se torna ‘grandioso, como um cidadão que circula entre as pessoas merecedor de respeito e atenção’. Bem falado, o idioma é elegante. Nosso Português não está longe disso, mas vem sofrendo ‘por demais’ na boca de muitos e na mãozinha rústica de outros.
Para eu não ser tão intransigente, vamos perdoar, em parte, quem o maltrata, por que faz o mesmo com outras palavras, embora tenhamos que admitir que vir vive sofrendo mais que ‘sovaco de aleijado’.
Verbo irregular é aquele que, ao ser conjugado, sofre alterações em seu radical: ver – vejo, se você vir fulano, se eles vissem a verdade; pôr – ponho, pus, se ele puser, se nós puséssemos, que você ponha… Bastam esses dois como modelos dessa irregularidade. Concordamos que os irregulares são muitos, e se leva tempo para serem dominados com segurança. Isso é certo, mas se pode admitir, também, por outro lado, que alguns não dão a menor chance aos pobres coitados. O caso de querer é gritante – ‘Se você querer‘ vem-se tornando uma expressão tão usual no dia a dia, que é tida como correta; ao menos, não percebem que soa mal, mas a continuam usando em larga escala. As flexões corretas – quiser, quisesse, queira – é que parecem estranhas, tamanha é a preponderância das erradas.
Vir, companheiro de ir e ser, de irregular passa a anômalo – tal a variedade de ‘radicais’ que tem quando é flexionado. Ser – sou, és, fui, fosse, fora, seja; ir – vou, vais, vá, fui, fosse, fora. De fato, vir é perigoso – venho, vindo, venha, vier, viesse etc. ‘Esperamos que você venha amanhã’, ‘Gostaria de que você viesse cedo’, ‘Não sei se eu posso vir‘, ‘Se ele não vier, avise-me’ – essas e outras maneiras de flexioná-lo são difíceis e pouco usuais, isso é verdade, mas o admirável é que quase não aparecem. E o intrometido ‘vim’ está tomando conta do Português – Não vou vim, Não podemos vim, Ele não vai vim, Não ‘tem’ ninguém para vim ajudar. Está-se tornando um termo vicário – aquele que substitui uma palavra para esta não ser repetida. Note este exemplo de termo vicário: “Você vai vir amanhã, Pedro?” E ele responde: “Não sei se posso fazê-lo“. Não sabe se pode vir. Não sabe se virá.
Podemos citar alguns tempos verbais e respectivas flexões do verbo vir para o efeito de lembrar ao leitor o que ele tenha estudado em seus cursos – presente do indicativo: venho, vens, vem, vimos, vindes, vêm. O lembrete: Em ‘O menino vem hoje’, por ser singular, a grafia de vem não tem acento gráfico. Mas em ‘Os meninos vêm hoje’, por ser plural, a grafia exige o acento circunflexo (^) como sinal diacrítico (diferencia o singular do plural). Outro lembrete: ‘vê’ – O menino vê a Lua no espaço (singular); Os meninos veem a Lua no espaço (plural). Antes, escreviam-se ‘vê’ e ‘vêem’, mas a Reforma Ortográfica aboliu o acento circunflexo do plural terminado em EEM, como ‘lê-leem, dê-deem, relê-releem, crê-creem’, e manteve ‘tem-têm, vem-vêm, detém-detêm, contém-contêm’ (esse ‘pulo’ é necessário). Alguém escreveu “Algumas questões me veem à mente”. Houve um lapso – Algumas questões me vêm à mente, do verbo vir, e não do verbo ver. O singular é – Alguma questão me vem à mente.
Pretérito perfeito do indicativo (chamado passado perfeito): vim, vieste, veio, viemos, viestes, vieram. Isto é extremamente delicado – não confunda, então, ‘vim’ com ‘vir’ quando usam ‘ele pode vim’ no lugar de ‘ele pode vir’. Vim é apenas da primeira pessoa – eu vim; e na locução verbal (dois ou mais verbos juntos na mesma frase com o valor de um) – Eu não posso vir – só o verbo auxiliar flexiona (poder); o segundo, que é o principal (vir), não flexiona. Não se pode usar ‘Eles não podem virem’, tampouco ‘Eles não podem vim’. Também ‘arranha’ ‘Eles não vinheram’, grafia que nem existe. Não é bom que se diga “Viemos aqui para falar com o senhor que…” no momento em que se chega ao local. Essa flexão seria ideal para indicar o passado, não para o presente. É preciso ficar bem claro – Vimos aqui para falar com o senhor que não foi possível sacar o dinheiro. No lugar de vimos poderíamos usar ‘estamos’. Viemos equivale a Estivemos aqui para falar com o senhor (ontem). ‘Vimos’ combina com ‘estamos’, ‘viemos’ substitui ‘estivemos’. Concorda?
Vinha eu (e não ‘evinha’ eu), vinhas tu, vinha ele, vínhamos nós, vínheis vós, vinham eles. Passado imperfeito do indicativo. Passado imperfeito do subjuntivo – se eu viesse, viesses, viesse, viéssemos, viésseis, viessem. Por favor, meu caro, jamais use ‘vinhesse’, que não existe. Vier, viera, venhamos, venhais, vierdes, virmos, vierem etc. O cuidado é imprescindível e um bom ouvido pode tirar dúvidas. Finalmente, convir e intervir seguem as mesmas regras de vir.