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Podemos alterar a terminação do verbo? E não seguir o paradigma da conjugação verbal?

‘Não!’, diria a norma culta, mas alterações acontecem na linguagem coloquial sem que todos percebamos.

Este comentário mescla a hipótese, talvez, ilógica, com a realidade conhecida de poucos. “E lá eíamos nós…” (e veio uma forte chuva).

Sob viés curioso, surgem flexões verbais inusitadas, alterando a sua semântica: “Cheguemos ontem à meia-noite.” Este analista cogita o ensaio maluco de transformar ‘sair’, verbo da terceira conjugação, em ‘saiar’, da primeira, ‘eu saiei’.

A linguagem ficaria insustentável?

Observada a fala cotidiana com olhar de lince, e considerada a Gramática Normativa, há flexões incongruentes: “Eu di uma tapa nele” (Eu dei um tapa…).

O proprietário de latifúndio (fazendeiro, para uns; latifundiário, para outros) só comparecia às suas terras esporadicamente. Na casa-modelo ou sede (Casa-Grande, para a vaqueirama), o homem se aloja.

Um dos empregados, estando ali não há muitos anos, fica sabendo da chegada do patrão e resolve visitá-lo. Curioso e meio ressabiado de sustos anteriores em outras estâncias, chega de mansinho.

“Boas-noites” (‘bas-noites’; é que alguns usam o cumprimento no plural, ficando interessante: bons-dias, boas-tardes), diz Joãozinho, nome fictício. “Boa-noite, achegue-se mais um pouco e se sente”, fala-lhe o chefe. E se senta o conviva.

Um pouco depois, sorriso maroto daqui, olhar desconfiado dali, o patrão interage com o senhorzinho João: “Vamos jantar!” E ele com ‘precaução’ (para mostrar-se educado), assegura-lhe: “Num sinhô, já janti!” Sorri com o olhar distante de quem finge, mas ávido de ‘exprementar’ as novidades da mesa farta.

“Bem! Mas se quiser, chegue-se mais e sente-se a meu lado para um dedo de prosa!” Tudo sob exclamação!

A que o João desconfiado, responde: “Já qui o sinhô inceste!” E se acomoda.

Farta-se, come do melhor, proseia, e vai-se já bem tarde (às vinte horas; o comum seria dormir ‘com as galinhas’) para seu rancho (não muito distante) depois de uma descida íngreme que dá acesso a uma pinguela sobre o corguete, no escuro da noite. O pobre homem não tem sequer uma lanterna.

No outro dia, contando a façanha a um companheiro (eram muitos na fazenda e nem todos se conheciam bem), disse-lhe: “Falêi pro homi qui janti, mais num janti não, tava mortinho di fomi; êu di foi a manta nêle!” (Manta não é tão-somente cobertor ou grande pedaço de carne, mas tudo aquilo que ‘esconde’ ou ‘disfarça’.)

Pausa: ‘êle’, com circunflexo, é pronome reto, com acento diferencial ou diacrítico para ficar distante de ‘ele’, nome da letra L. ‘Nêle’, contração de ‘em’ com ‘êle’, para ficar distante de ‘nele’, arroz com casca na Índia portuguesa. Assim, ‘tôda’, feminino de todo, pronome indefinido, com acento diferencial para distanciar-se de ‘toda’, pequeno pássaro da Jamaica. São muitas as razões cabíveis de terem sido abolidos os acentos diferenciais.

Acatou a ‘chamada’? Diz-se que Machado de Assis foi o mestre do suspense. Narrando seus fatos, interrompia-os para contar outros, nem sempre paralelos, deixando o leitor meio chateado; mas com a continuidade da ‘estória’, reconquistava-o. Machado foi ímpar nesse aspecto, como dizem os grandes analistas literários.

Não se sabe que o senhor João, o vaqueiro da história, usuário de idioma para ele ágrafo, já tenha usado ‘janter’ ou ‘jantir’, para justificar a desinência verbal ‘i’, na primeira pessoa do singular: eu comi, eu parti, mas se esbalda com ‘eu janti’ (eu jantei) e ‘di’, no lugar de ‘dei’. Certamente, ‘eu pranti milho no roçado’, no lugar de ‘eu plantei milho no roçado’.

Convoquemos o poeta que registrou ‘Pra dizer milho, dizem mio’, e mais outras frases soberbas do regionalismo, para que entendamos tantas variantes flexivas, formas verbais ‘difíceis’ para o falante, que não escreve, muito cobrado, coitado, logo ele que não conhece as sinuosas voltas do idioma pátrio.

A troca de fonemas não é novidade. Melencia, no lugar de melancia; jinela, no lugar de janela. Entretanto, no nosso hoje em dia, muitos alfabetizados usam ‘mexirica’, até ‘mixirica’, como aparece escrito nos locais em que vendem a fuxiqueira: a mexerica, a bergamota, a tangerina, ou a poncã. Cada uma com seu nome e suas características, e sua regionalidade. Aliás, faltou dizer a laranja-cravo. Tudo em seu tempo e com seu objetivo.

Logo, se surge ‘janti’, podemos encontrar ‘saiei’, como criança diz ‘eu sabo, ouvo, dizi e fazi? Como algum adulto usa ‘eu tinha trago’ (… trazido), ‘eu ponhava’, já que ‘punha’ é de difícil compreensão?

‘Arrecarda’ fica bem no lugar de ‘arrecada’; ‘Lá eu evinha’, no lugar de ‘vinha’. ‘Alembrar’, apesar de estranho, existe e é variante regionalista de ‘lembrar’, embora a sociedade culta rejeite. “Eu me alembrei de você ontem”, linguagem paralela. Há um momento em que a linguagem culta falada usa ‘alembrar’ sem sentir o impacto: Comecei a lembrar (…), que, sonoramente, fica ‘comecei alembrar’. Estranho!

A continuidade é ‘partinha’ no lugar de ‘partia’; ‘dasse’ no lugar de ‘desse’; e a consagrada forma do uso do imperfeito no lugar do pretérito imperfeito do indicativo: eu ‘comprava’ um carro se tivesse dinheiro (eu compraria); eu ‘ia’ com ele… (eu iria). Quase sempre, todos os verbos regulares passam por essa alteração pouco percebida.

E mais: “Doutô, é que nós nos amemo muito”, pessoa iletrada, justificando perante o senhor juiz o motivo da separação do casal.

O presente do subjuntivo usado no lugar do pretérito perfeito do indicativo: ‘Voltemos’ naquela hora, assim mesmo, debaixo de chuva. ‘Que nós voltemos logo’, presente do subjuntivo, não soa bem para o iletrado, tanto é que usa ‘quer que eu vou com ele’. Que eu volte, que tu voltes, que ele volte, que nós voltemos, que vós volteis, que eles voltem (presente do subjuntivo) seria estranho. E muitos não o usam. “Fumo e vortemo num piscar de olhos”, diz-se no anedotário, com fundamento. E ‘cheguemo’ se destaca no lugar de chegamos. O presente do subjuntivo tem valor de pretérito perfeito do indicativo: o homem comum não admite que ‘chegamos’ valha para o presente e para o passado perfeito do indicativo. Para ele, ‘chegamos’ é o agora, e ‘cheguemos’ é o ontem, por isso, amemos, voltemos, compremos. Amamos (quando é o passado) deixa dúvida. Por outro lado, ‘fazemos’ também; e ‘fizemos’ não é aceitável. Jamais, usaria ‘eu valho’, somente ‘eu tenho valor’ ou ‘eu valo‘ (alguma coisa). Confrontemos o uso infantil ‘eu fazi’ com ‘eu valo’ ou ‘eu ponhava’, do apedeuta.

Se não foi mudada a terminação da conjugação verbal: ar para er, er para ir, ir para er etc., entretanto, fica claro que ‘janti’, de verbo da primeira, se assemelha à flexão de verbo da segunda ou terceira conjugação: comi, vendi, parti. ‘Jantei’ se tornaria distante e teria pronúncia desconhecida, porque existe ‘eu resorvi’, ‘disci a ripa nele’.

No mundo da linguagem popular, ‘ponhava’ é melhor que ‘punha’. Isso mostra que o idioma tem faces múltiplas: a popular, a culta e a intermediária, em que se integram casa de pau a pique e sobrado suntuoso, e rancho se parece com bangalô.

Vivemos essas fases e talvez não as percebamos, se não olharmos para vários lados.

 

João Carlos de Oliveira

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