Sabemos, nós os usuários, e outros, etimólogos, filólogos, dicionaristas, professores, até os mais simples, que a linguagem é mutável e, a cada momento, pode apresentar novidade. Resta-nos sabê-la, acatá-la e usá-la corretamente.
Entre esses, estudiosos da língua, comentaristas, ensaístas e críticos literários admitem que mudanças são bem-vindas se não cometem exageros. Mas exageros há, e ‘invenções’ gritantes surgem, algumas ilógicas.
Um artigo sobre a aplicação das provas do ENEM diz que houve um sem-número, a chamada abstenção, de alunos ‘faltantes’ ao primeiro dia de prova…
Seria falta intencional? Ato voluntário?
O mundo da linguagem está errante? Não somos itinerantes nesse campo? Seguimos rumo incerto com relação à linguagem?
O uso do adjetivo ‘faltante‘ nos conduz a pensar sobre o sufixo -ante, já que se trata de um derivado sufixal do verbo faltar.
Nos diversos léxicos que consulto não encontrei, por incrível que seja, o sufixo -ante nem o adjetivo faltante. Apenas, faltoso, seu possível sinônimo, com a definição ‘que falta, que tem faltas; ausente, falho, falto’.
Essa relação seria suficiente para dizer que ‘faltoso’ e ‘faltante’ se equivalham? Eis a questão.
Em outro aspecto, ‘-ante’ tem duas vertentes usuais: 1. Preposição. Pé ante pé, ele passou entre os presentes sem ser notado. Ante Deus, somos pequeninos como pingo d’água no oceano da vida. 2. Prefixo. Antebraço, antessala, antedatado.
Isso basta para entendê-las?
Ante, do Latim ante (mesma grafia), é elemento dinâmico. Como preposição, equivale a diante de, perante. Ante todos, seja sincero. Como prefixo, tem o mesmo valor semântico de ‘antes’: anteontem, antevéspera, antenupcial. Confronte antefebril e antifebril: o primeiro, o que vem antes da febre; o segundo, o que combate a febre, contra ela. Curioso, não?!
E agora, o que é ‘faltante’? Pela colocação do sufixo (no final do vocábulo, formando um novo), trata de um derivado sufixal. Ante é formador de substantivos e adjetivos. Resta saber até que ponto é conhecido assim e se dicionários e gramáticas divulgam sua formação e semântica, de cunho variadíssimo. Esse sufixo aparece em muitos vocábulos conhecidos, mas não se sabe se estudados: fumante, brilhante, empolgante, deprecante, debutante. A lista é longa. Será que nos atentamos para o detalhe do significado?
Certo é que está havendo inovação, o neologismo (?) ‘faltante’ no lugar de ‘faltoso’. Este o conhecemos há um bom período, e todos fomos advertidos na escola quando faltávamos a aulas. No diário, vinha a abreviatura condenatória: F. Várias seriam motivo de reunião do Conselho de Classe, até com a presença de pais surpresos: “Meu filho vai à aula todos os dias?”
Ninguém, que se saiba, já questionou que seria ‘faltantes’ no lugar de ‘faltosos’.
Esse o debate de hoje.
Tomemos outros termos com o mesmo sufixo, todos conhecidos: relevante, angustiante, aconchegante, humilhante, falante, gritante, relaxante, concomitante, abundante (sem ordem alfabética).
Discutamos a semântica. O que é exultante, repugnante, galopante?
Feirante, s. m., comum-de-dois, a pessoa que trabalha na feira-livre vendendo produtos.
Horripilante, adj., o que causa horror, que amedronta.
Barbante, s. m., o cordel para amarrar fardos. Vigilante, adj. ou s., aquele que faz vigília, atento, atencioso, e não poderíamos substituí-lo por ‘vigiloso’. Certamente, não; mesmo que a liberdade poética o libere. Existe errante, e erroso seria viável em algum texto?
Há uma série de vocábulos com esse sufixo, que podem ser analisados, para se concluir que o uso de ‘faltante’ tenha sido adequado. Gramaticalmente, cabível; semanticamente, duvidoso.
Faltante e faltoso têm a mesma conotação? Há controvérsia. Quem é o constante? Quem é o esporádico?
A análise sobre o uso de nova linguagem da imprensa imprime nova faceta ao que se escreve no dia a dia, considerado que o debate gera ataques. No caso, seria mudança ousada, e caberia em outro contexto? Todo faltoso é, também, ‘faltante’?
Trocaríamos, num piscar de olhos, saboroso por saborante? Corajoso por corajante? Encorajante, sim, existe.
No campo dos elementos mórficos, é fácil encontrar ‘ante’ como prefixo: antever, latino, o mesmo que pré (prever). E seria de bom alvitre repisar que não devemos confundi-lo com ‘anti’, grego. Antemuro, anteaurora; antimofo, antibactericida.
A Gramática Normativa diz que ‘ante’ é sufixo formador de adjetivo ou substantivo a partir de um verbo: estudar, estudante; fumar, fumante; ajudar, ajudante. Seu valor semântico equivale a indicar ação, lugar de ação, agente ou resultado de ação.
A Gramática Houaiss, por José Carlos de Azeredo, editada pelo Instituto Houaiss, sobre sufixos formadores de adjetivos que significam ‘provido de, abundante em’: Grupo g, argumenta “denotando atividade do ser a que o adjetivo se refere”, –nte: insinuante, atuante (…)”. Obs.: o sufixo -nte, de alta produtividade, forma nomes (…) adjetivos e substantivos: caminhante, reclamante, manifestante, conflitante (…)”. Entre esses, estaria, certamente, ‘faltante’, mas não o registra.
E o que significaria, para nós, no atual contexto? Na análise deste comentarista, queremos que nãos seja tão excludente quanto ‘tratante, farsante’. A ironia é forte, a forma de dizer é voraz: farsante é aquele que faz rir com com suas representações, gracejos e chocarrices. Um mentiroso, pessoa que não merece confiança, um fingidor. Tratante, aquele que trata e não cumpre o acordo. E o que seria ‘errante’? O que vagueia, sem destino certo, vacilante, vagamundo, inseguro.
Nesse diapasão, o faltante, de visão intencional, seria aquele que comete o dolo de faltar, por livre iniciativa, por irresponsabilidade? Não seria o faltoso por caso fortuito (acidente, doença, motivo involuntário).
O uso do adjetivo é duvidoso semanticamente e suscita debate. Fica registrado o dito.
Para aliviar a intriga, estes fatos.
Uma propaganda sobre o direito de acessar e ouvir música pela Internet usa a linguagem “… leve ‘daonde’ você for”. Diante da norma culta, não se entenderia ‘daonde’. Se fosse usado ‘De onde você for’, haveria sentido. “Aonde você vai?”, “De onde você vem?” Existe ‘donde’, da linguagem popular, que alguns consideram erro, mas não é. Trata-se de forma contraída de de+onde, de que o caipira, econômico, tanto gosta: ‘Donde’ você vem? ‘Daonde’ é sufocante. ‘Onde’ não deve ser precedido da contração da (de+a). No uso de ‘daonde’, há um vício de linguagem, corruptela forte de ‘de onde’.
Alguém teria dito “… o terceiro que fui”. A regência verbal escapa cedo em muitos falares. Vai-se a um lugar. ‘O terceiro a que fui’ (ao qual). E muitos, ainda, usam ‘em’, preposição, no lugar de ‘a’ (Chegando em Teixeira de Freitas), ‘a Teixeira de Freitas’, razão por que não podem falar aboborinhas coloridas de quem não tem conhecimento de linguagem. O usuário ágrafo (que nunca escreve) não tem culpas. ‘Pro mode você fez isso?’ ‘Donde você é?’
Um amigo diz que a maior invenção do ser humano é a ‘porta’, sinônimo de ‘liberdade’. Sem ela, morreria sufocado e o direito de ir e vir estaria tolhido. A porta deixa-o livre. Sem porta, o homem é inerte. Ela o conduz à liberdade, prerrogativa de ser livre como um pássaro.
Até mais.