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O imperativo, que tem função apelativa, está sendo usado corretamente? Há evidências de que as distorções são enormes

“Meu filho, vá à casa de sua avó Maria e lhe peça uma xícara de açúcar emprestado”, frase de uma mãe no momento da necessidade, fato acontecido em muitas famílias num passado não muito remoto.

Poderia ser uma fala diferente, mas ‘a ordem’ para que o pedido fosse feito teria a mesma linguagem apelativa, sob pena de não se tomar um cafezinho naquele dia.

O açúcar não era o refinado; seria aquele vindo direto do engenho, com cor amarronzada, parecido com o mascavo, ou um tipo vendido atualmente em lojas de produtos naturais.

Mas era bom, talvez, mais saudável que muitos do atual mercado. Dizem que, hoje, colocam ‘uns tais conservantes’ que tirariam a naturalidade do produto, isso para manter sua durabilidade, já que se trata de alimento perecível.

Num determinado momento, ‘vá’, forma imperativa cotidiana, pode-se transformar em ‘vai’, com a mesma grandeza ou beleza de um linguajar comum, próprio de quem não tem exigências ou conhecimentos linguísticos.

Na Gramática Normativa, porém, há distinção entre uma forma e outra: ‘vá’ é a redação para o tratamento você; ‘vai’, para a segunda pessoa do singular (tu).

Ambas, é claro, são corretas.

A primeira forma (vá) trilha o caminho para que, em seguida, se diga ‘avise, chegue, coma, corra, diga, fale, saia, venha’ etc., todas da pessoa você, tratamento mais condizente com nossa brasilinidade (nosso brasilianismo?). É o que se supõe.

A segunda (vai) corrobora a norma gramatical e, em seguida, deve-se usar o mesmo tratamento, flexionando-se corretamente as formas verbais: ‘avisa, chega, come, corre, dize, fala, sai, vem’ etc., todas da pessoa tu, tratamento próprio da intimidade, da poesia, do amor platônico, de ‘menino’ para ‘menina’, e vice-versa, em momentos de pura paixão.

O engano, que muitos parece não perceberem, é a mistura das pessoas verbais num só texto, numa única fala, em que não se respeita ou considera a Uniformidade de Tratamento, fato que não se vê no hoje em dia. Aliás, até os grandes textos, as falas mais cultas, ou eruditas, praticam essa miscelânea. Por outro lado, pelo que se sabe, em muitas gramáticas, os gramáticos, ou gramaticistas, não tratam da uniformidade de tratamento, o que para eles seria irrelevante?

Seria importante a obediência ao tratamento gramatical.

Todo texto deve manter o mesmo tratamento do início ao fim; se a primeira forma verbal é da pessoa você, assim devem ser as seguintes; se for da pessoa tu, todas em seguida devem respeitar esse critério.

Mas não o fazem; por desconhecimento gramatical (o que não seria fácil) ou pelo fato de o redator considerar essa ‘regra’ picuinha de professor exigente, de alguém que quer perfeccionismo?

A mistura não importa; implica dizer, no pensamento de muitos, desde que o recado do anúncio, ou enunciado, seja dado.

As citações das formas imperativas anteriores, em ordem alfabética, teriam apenas a facilidade de identificação: mostrar verbos usados no cotidiano.

O redator começa seu texto com “Associado, compareça à reunião da Cooperativa no dia e horário marcados (…)”.

Compareça é a forma verbal própria da pessoa você, razão por que deve, daí em ‘diante’, flexionar os verbos escolhidos na mesma pessoa.

Venha acompanhado, traga sua caneta, use máscara etc. E as formas pronominais seguem o mesmo nivelamento: seu, sua, seus, suas, o, os, a, as, lhe.

Se o redator começa o texto com “Associado, comparece à reunião da Cooperativa no horário e dia marcados (…)”, (comparece é a forma verbal própria da pessoa tu), deve, por conseguinte, flexionar os verbos que surgirem na mesma pessoa.

Vem acompanhado, traze tua caneta, usa máscara etc. E as formas pronominais seguem o mesmo nível: teu, tua, teus, tuas, te, a ti.

Mas não o fazem.

Vê-se isto: “Faça seu empréstimo (…). Estamos aqui para te ajudar”, diria um texto. Faça é redação própria da pessoa você (como está na Gramática: faça você, faze tu, façamos nós, fazei vós, façam vocês). Assim redigido, não poderia haver o pronome ‘te’, por corresponder à pessoa tu.

A redação deve ser “Faça seu empréstimo (…). Estamos aqui para ajudá-lo”, que seria de bom nível redacional. Ou, em outra visão de tratamento, usar os pronomes você, senhor, senhora, vossa senhoria etc.

Ficaria feio se dizer ‘Estamos aqui para ajudar você‘ (para ajudar o senhor, a senhora, vossa senhoria)?

Na visão de muitos, seria muito cerimonioso, protocolar, e perderia o charme do contato, a simplicidade, o caráter popular. Em parte, sim. O ideal, então, para se evitar o ‘erro de redação’ (mistura de tratamentos), seria usar o tratamento você, típico do cotidiano, que, ainda assim, indica respeito, consideração, sem ser íntimo ou ultraconservador.

Não acatando essa visão, o texto deveria conter outras palavras: “Faze teu empréstimo (…). Estamos aqui para te ajudar”, mas esse ‘faze’ fica distante (?), e não conquistaria o cliente.

Se dizem “Fazei o bem sem olhar a quem”, por que não usar a redação comum em outras mensagens: “Fazei vosso empréstimo (…). Estamos aqui para vos ajudar’. (Ou ajudar a vós.)

Isso é cafona, cara!

Por esse ou aquele motivo, as redações de mensagens comerciais deixam a desejar em matéria de concordância verbal e/ou uniformidade de tratamento. É uma mistureba de doer os calcâneos.

Ouve-se de tudo: Vem pra Simpatia (nome fictício). Compre a prazo pelo preço à vista.

Percebeu a mistura? Vem é da pessoa tu; compre, de você.

Mistureba!

Corrigindo: Vem pra Simpatia. Compra a prazo pelo preço à vista. (Tratamento tu.)

Se não gostou, siga este critério: Venha pra Simpatia. Compre a prazo pelo preço à vista. (Tratamento você.)

Não ficou bem?

Entende-se, pois, que preferem a mistura de pessoas verbais na mesma mensagem, com frases diferentes ou no mesmo aviso.

E mais: não se deve, nunca, usar ‘pelo preço de à vista‘. Se coubesse esse modelo redacional, deveria ser usado, em outro momento, ‘pelo preço de a prazo‘. Essa redação choca?; portanto, a outra também.

Outro ponto que se distancia da redação normatizada é quando o âncora de um programa anuncia “Num sai daí que voltamos já, já”.

O popular ‘num’ não é problema, e tanto existe na pronúncia popular como na escrita. Não se trata da contração de ‘em um’: num instante (em um instante).

Tem-se a corruptela de ‘não’: “Num foi lá e fica reclamando’, texto para ‘Não foi lá e fica reclamando’.

Mas isso não importa para a questão da forma imperativa.

O tratamento misturado destoa muito do que diz a Gramática Normativa: sai, para a pessoa tu; saia, para você.

Sai cedo, meu amigo, que os Anjos te ajudarão.

Saia cedo, meu amigo, que os Anjos o ajudarão.

Vemos que se trata do imperativo afirmativo.

As duas formas verbais no imperativo negativo têm, obrigatoriamente, outra redação:

Não saias apressado, meu amigo, pois os Anjos não te ajudarão. (Tratamento tu.)

Não saia apressado, meu amigo, pois os Anjos não o ajudarão. (Tratamento você.)

Não saias tu, não saia você, não saiamos nós, não saiais vós, não saiam vocês. Se precisar, reveja a Gramática.

‘Num sai daí’ não existe, mas usam. O que diz a norma? Não saia daí; ou, Não saias daí.

Por isso, a linguagem do caboclo ‘Nóis aqui é que manda no pedaço’ é respeitosa e válida.

‘Amanhã, nós vai lá’, outro exemplo que encanta.

Noutro dia, nós diz mais alguma coisa. Obrigado.

 

João Carlos de Oliveira

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