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Podemos ‘esclarecer’ a regência do verbo esclarecer? Transitivo direto, transitivo indireto e/ou transitivo direto e indireto?

Trata-se de verbo de sentido múltiplo, usado no dia a dia, tanto na linguagem popular como na culta. Os jornalistas, falando de fatos, dizem ‘As autoridades devem esclarecer os fatos’.

Nesse contexto, a regência desse verbo é transitiva direta: esclarecer o quê? Os fatos (complemento verbal), sem o uso de preposição obrigatória, portanto, objeto direto, exigido por verbo transitivo direto.

Assim, dizem os compêndios, o significado de esclarecer é explicar, elucidar, justificar: esclarecer o mistério que assombra a comunidade local, quando aparece um vulto similar a uma pessoa. Lobisomem, pessoa disfarçada ou duende, pagando os pecados e fazendo gestos horripilantes com as mãos e o corpo. O que é isso?

Em primeiro instante, esclarecer tem sentido simples: tornar claro (por isso, clarear), iluminar, alumiar, acender a luz para que o local seja visto em abundância e amplidão. O Sol esclarece o ambiente.

Desse momento, em que o vocábulo tem sentido denotativo: denota o que é em si mesmo, sem ‘invenção’ semântica, surge o sentido figurado, conotativo: “Você precisa esclarecer o que faz, pois, até agora, nada entendemos”, teria dito Seu Manuel a Joaquim, o genro enigmático, que discrimina a própria esposa (Isabelita), a filha mais velha desse fazendeiro de Queimada Velha, lugarejo perto de Cachoeira Grande, distrito de Jacobina, aqui na Bahia.

Esse processo é normal: primeiro o aspecto denotativo. O cabo da enxada quebrou. Depois, o sentido especial, o inventado, chamado conotativo ou figurado. Você deve dar cabo desse sujeito importunador, que vem atrapalhando nossa vida e de toda a vizinhança.

Praticamente, todos os vocábulos têm essas duas nuances. O dicionário registra o denotativo e, a depender do uso cotidiano, para se tornar amplo ou completo, pode mostrar os ‘ares’ do figurado.

A água está fria (de temperatura baixa, gelada). O espião é uma pessoa fria (indiferente, sem alma, que não tem compaixão de ninguém). O criminoso matou a jovem a sangue frio (sem dó nem compaixão, nem teria motivo justo; no ânimo das discussões, em que o sangue sobe à cabeça, perdeu a razão).

O homem frio é o cruel, indiferente, insensível, sem alma (entre outros sentidos).

Se o dicionário não registra o aspecto figurado de uma palavra não seria porque não existe, seria porque nem sempre há espaço para toda essa semântica diversificada nem tudo deve vir a lume. Mas o poeta, o escritor, o jornalista, e outros, podem criar novo sentido, e vêm muitos exemplos, que cada pessoa conhece, conforme a sua região, a sua fala. Um bom motivo de a criação de sentido figurado de uma palavra é o uso da ironia. Como ela é bonita! O tom de voz, a maneira de falar, o momento, diz o contrário: É muito da feinha! Embora não tenhamos nada com isso, e seria ato indesejável e ilegal esse proceder, mas esse modus operandi existe, pelo menos na ausência da pessoa criticada, e pode surgir a frase indiscreta, pejorativa: A coitada parece uma bolha de sabão.

O popular insinua que ‘coisa fria’ é aquilo que é falso, sem valor legal. Uma nota fria. Notas fiscais frias foram encontradas com o caminhoneiro. Não vai nessa não, meu filho, que é fria!

Frio é o desalento, fraqueza, inércia.

Frios são os produtos da salsicharia, carnes conservadas e defumadas.

A relação de significados é grandinha e não precisa ser expressa toda ela aqui. O povo sabe do seu momento de falar. O cara frio não deu cabo do desejo sexual da parceira, que estava fogosa como ela só.

Esclarecida‘ o que seria a mudança de sentido do verbo esclarecer, decodifiquemos sua regência e vamos a outras frases.

Esclarecer é verbo transitivo direto.

Tornar claro: A nova pintura da casa esclareceu o ambiente (aclarou, iluminou, alumiou etc.).

Elucidar, explicar: Neste momento, na entrevista, o senhor delegado de polícia esclarece a morte trágica da jovem, fato acontecido ontem numa festa de paredão, assassinada com várias facadas (elucida, explica, dá a versão que considera mais cabível).

Verbo transitivo indireto.

Justificar, alegar, dar opinião: Machado, esclareça a todos.

Verbo transitivo direto-indireto.

O professor esclarece as regras gramaticais a seus alunos (diz-lhes o que são, como ocorrem).

Essas três regências, as possíveis ou lógicas, nem sempre são devidamente usadas.

O comum, como verbo transitivo direto, é relativo a coisas. Esclareça o que você disse. Como verbo transitivo indireto, refere-se a pessoas. Deixe que o analista esclareça a eles.

Não seria ideal a redação A autoridade esclarece pessoas. Melhor: A autoridade esclarece às pessoas todos os acontecimentos. O prefeito esclarece a pessoas presentes como vão ser realizadas as obras do escoamento fluvial.

Como verbo transitivo direto e indireto, dá-se quando alguém justifica uma coisa a uma pessoa: A mãe esclarece aos filhos o que aconteceu naquele dia, em que o esposo foi atropelado.

A ordem dos objetos (direto e indireto) não importa na frase: A mãe esclarece o acontecimento aos filhos. A mãe esclarece aos filhos o acontecimento.

Também, esse verbo ainda é usado como pronominal: esclarecer-se. Esclareça-se, Pedro, pois o que disse não é convincente.

Um bom dicionário, que não tem o escopo tradicional, traz um momento em que esclarecer tem a denotação de informar, comunicar, instruir, ensinar.

O oncologista esclareceu como o paciente deve cuidar-se no cotidiano.

Pode-se dizer, ainda, que esclarecer e informar são dois bons sinônimos entre si. Esclareço-o de que sua dívida está em cobrança judicial. Informo-o de que sua dívida está em cobrança judicial. Informamos a todos que o Papa condena a guerra, seja ela por qualquer motivo. Esclarecemos a todos que o Papa condena a guerra, seja ela por qualquer motivo.

Finalmente, a formação do verbo esclarecer: esclaroecer (prefixo, radical, sufixo), um verbo parassintético. O antônimo, mais comum desse verbo, é escurecer.

Para fechar o de hoje, isto:

No final da festa, alguém ‘recolhe’ sobras de alimento. Como seria pessoa simples e desconhecida, vieram a dizer que esse ato é feio, que viola etiquetas. Em outro, em festa de arromba, filmaram pessoa recolhendo alimentos e colocando-os em vasilha pessoal (supostamente para levar para sua casa). Daí o comentário de que as ‘imagens viralizaram’.

O desperdício de alimentos é notório, e tudo deve ser (re)aproveitado, um ato benéfico. O melhor seria, no primeiro caso e no segundo, considerar-se tudo normal, e jamais ofender ou ridicularizar a pessoa comum como não engrandecer a pessoa notória.

Nós ‘se vê’ amanhã.

 

 

João Carlos de Oliveira

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