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‘Ele se foi’. ‘Deus o levou’. ‘Foi morar na cidade dos pés-juntos’. ‘Bateu as botas’. O que isso significa, companheiro?

Estamos diante de uma das figuras de linguagem, e todas elas, como insinua sua definição, têm sentido figurado.

Não vale o aspecto denotativo, o primeiro a ser explicitado no dicionário, mas o imaginário, criado, inventado, sob o aspecto conotativo do vocábulo, que precisa ser bem entendido, visto por um ângulo diferente. Ao contrário, não seria especial e pouco seria entendido, levado para um plano inconveniente.

Evitemos o malentendido (ou mal-entendido). O mau-entendimento não decifra a figura de linguagem, como a metáfora (“Sei que canto. E a canção é tudo./ Tem sangue eterno a asa ritmada./ E um dia sei que estarei mudo: (…)”. Motivo, Cecília Meireles.

‘Ir-se’, do qual se extrai ‘Ele se foi’, significa, numa linguagem suave, falecer, morrer.

Eufemismo, figura de linguagem que consiste em atenuar o que seria desagradável, ou considerado como tal pela substituição de palavras ou expressões rudes por outras mais suaves, diz o compêndio. Dizer que alguém ‘morreu’ seria desagradável? De início, quando não se usa ‘morrer’, de tom forte?, migramos para ‘falecer’, termo brando, típico da linguagem formal e educada, denotando elevado nível de respeito ao morto.

O noticiário antigo, no alto-falante da igreja local, ou no carro-volante, anunciava a morte de alguém com uma linguagem ‘pronta’, guardada na gaveta da escrivaninha no local em que esse tipo de anúncio era formalizado: “Nota de falecimento. Os familiares do senhor (…) anunciam, com profundo pesar, seu falecimento, ocorrido nesta manhã, nesta Cidade. O sepultamento se dará às (…), saindo o féretro da rua (…) para a necrópole local. A família enlutada agradece por esse ato de fé cristã”.

Ou muito próximo dessa redação. Em todo o País, seria o mesmo modelo. Hoje, a rede social o substitui, e diversas são as formas de dizer que alguém faleceu.

‘Morrer’ caracteriza um tipo de mensagem, e ‘falecer’, outro?

“Fulano morreu”, alguns dizem. “Ele faleceu”, outros a preferem em tom cerimonioso. Por quê? Essa linguagem é regional, ou depende de quem fala? Tem a ver com a personalidade de quem ‘deixou este mundo’? ‘Morreu de acidente‘ e ‘faleceu no hospital‘ variam muito do momento e do falante.

Em tom poético (?), o falecido ‘foi morar lá no Alto’.

Tudo para evitar que se ofenda, para que não haja vilipêndio verbal ao morto; atos, palavras e gestos são ‘calculados’ para que não firam a imagem do falecido, sob o mesmo tom de respeito que se tem diante do sepulcro.

Esse modo cauteloso é porque o falar da morte nos pede silêncio, e cada um tem seu jeito de expressão, daí surgindo os eufemismos em relação à morte. Talvez, sem querer, o mensageiro comungue a tanatofobia, o medo da morte, que é inevitável, mas não se gosta de fazer ‘loa’ a ela.

Eufemismo, literalmente, é o bom dizer de uma expressão: ‘eu’ preceitua o lado bom, da mesma forma que usamos eufonia (o som agradável), eucaristia (a boa mensagem), eutanásia (a boa morte). Todo ‘eu’, em termos desse naipe, implica o harmônico, o agradável, salvo melhor juízo.

No instante em que buscamos entender o eufemismo, de bom alvitre lembrar que existe o seu antônimo, o disfemismo (que pouco usamos ou comentamos): expressão de uma ideia de maneira rude ou desagradável, acentuando-se o que se julga negativo. Algo preconceituoso, desrespeitoso, ou politicamente incorreto, para dias atuais.

A Gramática consultada registra: “Tire as suas patas disso aí”. “A perua não fechou a matraca durante a reunião”.

Já ouviu algo parecido com isto: “Seu bofe, cale a boca e vá procurar sua laia… Você aqui é persona non grata”. “Ele tem o olhar de peixe-morto”. São disfemismos, que menosprezam ou discriminam.

Em certa época, esses termos seriam apenas parte da gíria, com certo sarcasmo ou ironia; nada além disso. Gíria vulgar, é verdade, mas não teria o aspecto de hoje em que pode haver crime, sob as mais diversas conceituações.

Costuma a Gramática classificar o pleonasmo, figura de linguagem muito popular, em literário (“A vida leva-a o vento”, in A Vida, de João de Deus, poeta luso), e vicioso (“Eles ‘acabou’ de descer lá pra baixo”), do anedotário.

Se assim o é, embora não se encontre esse registro nos textos que falam de linguagem figurada, o eufemismo teria tríplice aspecto.

O culto: Foi morar no reino de Deus. Ele foi para o reino de Deus. Foi morar com os Arcanjos. Deus o levou. Acabou de nos deixar. (Senão culto, mas religioso, cerimonioso.)

O popular: Foi morar com Aquele lá de cima. Passou deste para outro mundo. Foi desta (vida) para uma melhor. Descansa em paz.

O vulgar: Bateu (com) as botas. Bateu (com) a caçoleta. Foi morar na cidade dos pés-juntos. (Senão vulgar, mas sarcástico.)

Registram-se, também, estes:

Ela está hoje naqueles dias (para dizer que tem o mênstruo ou está menstruada).

Aquela mulher trabalha na vida (prostitui-se).

No passado, quando se usava muito teúda-manteúda, para dizer que o cidadão tinha uma mulher por conta (que poderia caracterizar adultério ou bigamia, se casado), dizia-se que fulana era mulher-dama, para não dizer prostituta, que poderia ser pejorativo. Concubina teria outro significado.

Ele não é burro, mas um rapaz desinteligente.

Ganhou dinheiro por meios ilícitos (roubou, e uma série de sinônimos).

Aquela garota é desprovida de beleza (não é bonita).

Todos faltam com a verdade (mentem).

Coitado! Está em situação de inadimplência (para não ser chamado de mau pagador). Aliás: mau pagador sugere aquele que tem recurso e embroma, não quer pagar. O inadimplente nem sempre seria mau pagador. Trata-se daquele que, temporariamente, está sem condição de adimplir seu débito: desempregado, ou o mísero salário não foi suficiente. Órgãos há que fazem o cadastro do bom pagador. O que isso quer dizer? Se seu nome não está nessa lista, você é mau pagador, termo que não pode ser usado, pois ofende, injuria, menospreza.

Alguns eufemismos são muito interessantes, outros nem tanto, até circulam, mas não vale a pena sua citação.

Outros tiveram seu aspecto histórico, e hoje seu uso é limitado ou específico.

Ele contraiu o mal-de-lázaro (para dizer hanseníase, e não se falar em lepra).

Todas são crianças excepcionais (para não dizer que teriam algum retardo mental). A saudosa Helena Antipoff, educadora russa radicada no Brasil, dizia ‘crianças superdotadas’, aquelas atendidas pela Fundação Pestalozzi, expressão que adotou em toda a sua época atuante em Ibirité, MG, onde fiz um curso, pela Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais. Infelizmente, não a conheci, faleceu em 1974, e o curso foi em 1975, mas ganhei um livro biográfico escrito por seu filho sobre ela, e conheci sua história.

Machado de Assis, talentoso e poético, disse em seu célebre soneto A Carolina, dedicado à nobre esposa: “Querida, ao pé do leito derradeiro/ Em que descansas dessa longa vida,/ Aqui venho e virei, pobre querida,/ Trazer-te o coração do companheiro”. Ricos em metáforas, mas com grandiosos eufemismos: ‘leito derradeiro’, ‘descansas dessa longa vida’.

O eufemismo, pois, é uma figura de retórica com largo uso no dia a dia.

Dois registros de elevado nível: Este trabalho poderia ser melhor (para não dizer ruim ou péssimo). Você não foi feliz com suas palavras e intenções (para não dizer que cometeu gafe imperdoável ou se deu mal).

Registre em sua agenda as expressões eufemísticas mais interessantes a seu ver, inclusive muitas que não estão aqui.

Sucesso!

 

João Carlos de Oliveira

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