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Há palavras curiosas, e esta seria uma: ‘preito’. A que ela nos remete? Como usá-la?

Mormente, como diz o experiente, que não mete a mão em cumbuca, palavras assim nos podem enganar, pois, nem sempre, sabemos usá-las de forma segura.

‘Preito’, com que ainda não somos familiarizados, não tem sido vista por aí.

Em reunião de advogados, uma doutora da lei, bem falante, dicção agradável aos ouvidos, embora não tenha expressado as frases mais estonteantes, usou-a para homenagear um colega.

Candidata a uma vaga na Ordem (OAB), fez sua apresentação, citou colegas e dirigiu termos elogiosos ao advogado que teria sido aprovado em concurso.

“Neste momento, queridos colegas, externemos nosso ‘preito’ ao colega (…), que tem prestado relevantes serviços à Ordem, razão por que lhe damos os mais efusivos parabéns pela sua vitória”.

Se não exatamente assim, mas algo similar.

E o que é ‘preito’?

Sabemos todos, habitantes que somos deste rincão, em virtude dos diversos níveis culturais que nos envolvem, o que é ‘pleito’ quando estamos em período eleitoral, já que somos obrigados a votar. (Quando o voto deixará de ser obrigatório?)

Podemos confundir um com o outro?

Pleito, vocábulo fácil de falar, dá-nos o verbo ‘pleitear’, comum a quem deseja ocupar cargo, em especial, público.

O dicionário nos conduz a mais detalhes: pleitear é candidatar-se a cargo eletivo. A relação sinonímica se expande, embora menos conhecida popularmente, em que é também: litigar, demandar, contestar na Justiça.

A peça vestibular, em que o advogado defende o cliente, pode esboçar que a parte ‘pleiteia’ seus direitos na Justiça (ação trabalhista, por exemplo).

Em outra, o causídico pleiteia direitos quando defende a própria causa.

Esse aspecto jurídico não circula fora da Justiça com naturalidade por ser uma linguagem específica de classe profissional. Quem litiga é o demandante, requerente etc. ou ‘pleiteante’, pessoa que é parte num processo judiciário ou administrativo.

Como vemos, trata-se de um termo técnico, próprio do Direito.

Busquemos outros prismas.

Enrolou, professor, e não nos disse o que é ‘preito’.

Carma, meu amigo, agorinha ‘mermo nóis vai dizer’ o que significa”.

É que há palavras parecidas quanto à grafia e pronúncia, mas com significado próprio.

Pleito e preito são, por isso, parônimos.

E se alguém estivesse falando ‘errado’! Há quem pronuncie ‘a pracado carro. Algum camponês, no seu jeito peculiar de pronúncia, poderá dizer ‘a prantação’ de mandioca está viçosa. Ele ‘pranta’ feijão, milho, melancia, abóbora.

Confundir ‘planta’ com ‘pranta’ vem a ser rotacismo linguístico: blusa e ‘brusa‘; calma e ‘carma‘; assim, possivelmente, dona Cleusa é chamada dona ‘Creusa‘, ou vice-versa. A personagem Cebolinha se destaca por essa razão: o R se torna L: ‘tloco’ um Real por dez moedas de dez centavos.

Viva nossa inteligência! O que pesa mais: um quilo de chumbo ou um quilo de algodão?

Planto pode-se tornar ‘pranto’, não o exato choro de quem se emociona, perde algo ou se vê inferiorizado. Ah! dizem que o ‘pranto feminino’, em especial da mãe, é indício de ‘autoridade’.

“E a ‘bicicreta’, seu Manuel, ficou pronta?”

São centenas de palavras como exemplos, em que o grupo consonantal pl se transforma em pr, mas entendemos bem e consideramos esse fato, nas mais das vezes, puro regionalismo, ou dislexia, assim como uma criança pode trocar V por F, ou vice-versa. A ‘faca’ dá leite; a ‘vaca’ cortou meu dedo. P pode ser trocado por B, ou vice-versa. Sabemos de imigrantes que se detêm diante dessas duas consoantes. O R gutural de alguns, a ‘porta’, pode chamar a atenção. A carne está pronta. Essa fala é natural.

Particularmente, não domino o uso de ‘preito’, sinônimo de ‘homenagem’. A advogada em questão, sim, teve a maestria de usá-lo de forma brilhante.

O comentário serve de alerta: não tendo segurança, não tendo total domínio do vocábulo, em sua grafia, pronúncia e significado, não o use para evitar gafe. A melhor saída é a opção pelo substituto.

Pleito, na sua dimensão semântica, vem a ser: questão judicial, demanda, litígio, debate, discussão, eleição. O último seria o mais conhecido e usado. Um dicionário diz que vem do Espanhol ‘pleito’, com a mesma grafia.

Outro, entretanto, diz que pleito e preito têm a mesma origem latina.

Como diz a etimologia, preito vem do Latim placitu(m), étimo que pressupõe o que é plácido, indicativo de paz, tranquilidade. A placidez de pessoa educada. A ‘placitude’, como quietude, moldada pelas palavras sábias de alguém com larga experiência de vida.

A História disserta sobre a vida de Plácido Castelo, cidadão cearense de envergadura. Que bom!

O ‘l’ de ‘pla’, no termo de origem latina, foi transformado em ‘r’. Deu-se um metaplasmo.

Por conseguinte, nosso falar regional bem típico não está errado ao dizer ‘prantação’ de milho, ‘prantar’ feijão. Por isso, se Cebolinha faz o caminho inverso, temos que ver que se trata das nuanças do idioma, de sua entonação, de sua ortoépia, delicada que é.

Não nos espantemos com essas ocorrências.

‘Preito’, vemo-lo como ‘ajuste, pacto, promessa’, em Português ligeiramente arcaico. O moderno nos leciona que significa ‘vassalagem, dependência, sujeição’. Isso quer dizer que um vassalo, que acatava as ordens do Reino, de seu comandante, o monarca, estaria sujeito a um ‘preito’.

De um e de outro se derivam verbos: ‘pleitear’ (candidatar-se, desejar, querer) e ‘preitear’ (render preito a alguém, fazer homenagem a outrem).

Essa diferença de grafia e pronúncia seria necessária? Para que não se diga que estão incorretas, conhecendo-as em seus vários aspectos.

“O senhor, a partir de hoje, tem um preito: deve cuidar da capina de toda esta roça de mandioca; seu eito de trabalho vai da beira do rio até a extensão de uma légua”, teria dito ao criado o capataz, por ordem de seu amo. Trabalho análogo ao de escravo.

Estamos no Brasil colonial de resquícios da escravidão. ‘Casa Grande y Senzala’, de Gilberto Freyre, nos dá caminhos de priscas eras em que o Senhor do Engenho foi coronel-ditador, mandatário, chefe de uma região, tão vasto era seu latifúndio.

A advogada pulou toda essa relação sinonímica ao dizer, apenas, que se prestava um ‘preito’ ao colega, homenageando-o.

A dinâmica do idioma penetra raízes, e palavras mudam de sentido através dos tempos. Isto é a semântica.

De placitu(m), até chegarmos a preito e pleito, houve metaplasmo, processo histórico de formação de palavras em que ocorre alteração de fonemas por acréscimo, supressão, permuta ou transposição.

Stella nos deu estrela; umero, ombro; stare, estar; spiritu, espírito; lacuna, lagoa. O nome próprio ‘Perla’ vem de pérola; ‘imigo’, como muito usou o poeta Gonçalves Dias, vem de inimigo. A listagem é grandiosa, e seria fácil encontrarem-se explicações e exemplos sobre os diversos tipos de metaplasmo.

Foi isso.

Este texto serve para alguma coisa?

João Carlos de Oliveira

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