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Vamos analisar a regência verbal nestas frases? Deus o proteja. Deus lhe proteja. Deus lhe proteja a saúde

O bom uso da regência verbal é um fundamento para a boa escrita.

Mas não seria tão fácil, e todo cuidado é pouco.

O verbo proteger é transitivo direto, cujo pronome é ‘o‘, chegando ao feminino (‘a‘) e ao popular você.

Comecemos a comparar: Deus protejaele‘ (frase popular) tem o mesmo valor semântico e gramatical de Deus o proteja.

E ainda: Deus proteja você. Deus proteja os homens de boa vontade. Deus proteja essas crianças.

Em cada uma delas, existe o objeto direto (exigido pela regência transitiva direta).

O que se analisa a mais é que muitos usuários não distinguem o uso de o comparado ao de lhe.

Se verbo transitivo direto, como diz a regra, temos objeto direto: Deus o proteja.

Por não se tratar de verbo transitivo indireto, não caberia o pronome lhe, mas é assim usado, porque é mais fácil, seguindo o costume de outros verbos? Eu lhe vi na rua ontem. Pode deixar, eu lhe atendo. Eu não estou lhe chamando aqui.

Todas populares, em que o normal seria o uso de ‘o’.

Ainda serve de comparativo quando os pronomes o e lhe são substituídos por ‘te’; às vezes, ‘vos’, similar a frases bíblicas.

Deus te proteja, meu filho! Deus vos proteja! (te e vos são objetos diretos.)

Em outras construções frasais, te e vos podem ser objetos indiretos, o que implica dizer que a linguagem popular não diferencia um caso do outro. Vale o modo de se dizer a mensagem, de se falar como se aprende em comunidades simples, sem nenhuma pabulagem: De coração, eu te dou este presente. Deus vos oferece um caminho.

A linguagem simples os usa como objetos diretos: Eu te adoro. Eu te amo. Deus vos ama. Alguém vos chamou aqui? (esta, linguagem irônica, imitativa do nível cultural).

Esse uso se torna generalizado: ‘te’ para lá e para cá, não importando que haja objeto direto ou indireto, ou que a frase não respeite a regra gramatical.

Por isso, Deus o proteja se torna Deus lhe proteja ou Deus te proteja.

Se usado o pronome pessoal oblíquo ‘lhe’, como se fosse objeto indireto, o verbo seria transitivo indireto. Mas esse uso não está estipulado no critério da Gramática Normativa. E existe? Sim, e circula muito, mas se trata de frase popular aceita e entendida; entretanto, não segue o critério da linguagem culta (ou gramatical).

Deus o proteja, meu filho!, frase de nível culto, não típica da linguagem falada cotidiana.

Deus lhe proteja, meu filho!, frase popular, que não acata a norma gramatical.

Deus lhe proteja a saúde, meu filho!, frase culta, pouco conhecida, em que o pronome lhe não é oblíquo; tem valor de pronome possessivo; não é objeto direto nem indireto, mas adjunto adnominal equivalente a ‘sua’: Deus proteja a sua saúde, meu filho!, ou Deus proteja sua saúde, meu filho! (sem o uso do artigo a antes do possessivo).

Para o efeito de outros paralelos, vemos frases que não contemplam a regência verbal adequadamente, usadas por pessoas de nível cultural elevado.

Muita ‘gente grande’ diz ‘A firma que eu trabalho‘ (que costuma acontecer na escrita e na fala).

E agora? Qual a regência do verbo trabalhar? Passa a ser verbo transitivo direto, do mesmo nível de O homem do campo trabalha a terra, mas essa não é a semântica da frase anterior nem seria a intenção do falante, razão por que o contexto fica prejudicado.

O comum é ser empregado como verbo intransitivo. O homem trabalha. Todos devem trabalhar. Trabalho duro todos os dias. O operário trabalha muito para sustentar a família. Trabalhei muito hoje.

Nessa mesma regência, aparece em outros enunciados, com a diferença de ser acrescentado um local: Eu trabalho nesta loja.

(Em frase desse naipe, seria tido como verbo transitivo indireto, o que gera muita discussão.) Mas, segundo o que nos debulha a Gramática, trata-se mesmo de verbo intransitivo, seguido de um adjunto adverbial de lugar.

Quem trabalha, isto é, aquele que tem uma ocupação remunerativa, trabalha em algum lugar.

Frases espontâneas, cotidianas, representativas do labor humano, porque o homem deve trabalhar, porque o trabalho representa, ao mesmo tempo, três aspectos: necessidade, obrigação e virtude (salvo o juízo contrário). Ele trabalha no armazém; eu, na roça.

‘Onde’, como se sabe, indica lugar. A loja onde trabalho fica na esquina do Lá-vai-um (o lugar de ninguém, deserto como o Gobi, na China).

Muito usado, desde que não seja confundido com aonde, onde torna-se pronome relativo, que, desdobrado, equivale a em que, com o mesmo valor de no qual, na qual, nos quais, nas quais, a depender do substantivo posto na primeira parte da frase.

O armazém em que trabalho vende secos e molhados (no qual).

A casa em que a moça trabalha não tem condicionador de ar (na qual).

Alguns setores da indústria em que os operários trabalham têm um ar pesado (nos quais).

Em todas as lojas em que moças modernas trabalham há várias delas muito bonitas (nas quais).

O que não se sabe seria o porquê de um redator usar ‘o banco que eu trabalho’.

No comum, ninguém ‘trabalha o banco’ (na semântica tradicional de trabalhar). Foi esquecido onde, que, nesse caso, pode ser substituído por EM QUE. O banco em que eu trabalho está em greve. (O banco X, no qual trabalho, demitiu vários colaboradores.)

Seria preguiça de pensar? Não teria o hábito de fazer a transposição redacional? O redator desconhece esse critério?

A regência do verbo trabalhar como transitivo direto seria pouco usada no contexto popular.

O que a arte ‘trabalha’? Em outro dizer, com que ela ‘trabalha’? O ourives trabalha com quê?

O ourives trabalha o ouro; o oleiro trabalha o barro; o escultor trabalha a matéria bruta e a transforma em arte; a propaganda trabalha o visual e, às vezes, o (sub)consciente das pessoas.

Ele trabalha com o ferro.

Em trabalhar a matéria, conforme se deduz pela lógica, há objeto direto (a matéria, como nas frases anteriores: o ouro, o barro etc.).

Se usarmos ‘Josafá trabalha com areia, Pedro trabalha com estrume de vaca, Jordano trabalha com abelhas’, agora, trabalhar passa a ter o comportamento de um verbo transitivo indireto, além de mais fácil se entender a mensagem.

E o verbo proteger muda de regência? Comumente, não. Apenas, a introdução mostra a troca de pronomes, mudando o conteúdo frasal entre as linguagens culta e popular.

Essa linguagem chama sua atenção? Se analisada por você, haveria outros prismas?

 

João Carlos de Oliveira

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