Peço desculpas ao visitante por não fazer, nesta edição, o comentário costumeiro sobre aspectos de nosso idioma.
Vem a lume (por sugestão de um amigo, e ponderei se o atendia, mas acatei a ideia) o poema TRIBUTO A MARIPOSA a traquejada mula de todas as lidas, classificado em primeiro lugar na 5a. Edição do Prêmio Castro Alves de Literatura (2021), concurso promovido pela Academia Teixeirense de Letras, ATL (área interna para os membros-efetivos), da qual faço parte, inscrito na Cadeira 27. O site da ATL tem esse resultado.
Já fui premiado em outra feita com um poema sobre o nosso Patrono, o poeta condoreiro Castro Alves.
Com tema livre, e por ter vivido no campo até os 20-21 anos, um camponês que levava um dicionário para a roça, comprado na Livraria Brandão, por volta de 1960, em Jacobina, BA, onde hoje seria O Calçadão, busquei fatos com que convivi: os animais da nossa lida diária, e escolhi poetizar sobre esse belíssimo muar, dando ao texto a expressão que consta no título. Não sei se vai agradar a todos, mas a linguagem própria seria um motivo para esta publicação: vocábulos campesinos e regionais. O termo mariposa é muito conhecido no campo, e por haver algumas espécies bastante coloridas e bonitas, a palavra se torna nome próprio de animais com os quais o homem campeiro convive: uma vaca, uma mula, um boi de canga etc. Foi esse o motivo do título para o poema, e como foi um animal tanto de viagem, carga e campeio, surgiu o complemento: a traquejada mula de todas as lidas (por ter sido ‘pau para toda obra’), no nosso querido linguajar rural e coloquial.
Este poema não tem, sequer, uma vírgula, mas o texto segue com a devida coesão, até o imprescindível enjambement está presente. E não há maiúscula para o início de frase. Rimas em alguns versos, mas as existentes seriam de boa qualidade. Basta ver todo o contexto com certo olhar para a análise mais adequada.
Observadas as rimas, podem-se considerá-las interessantes, embora o poema tenha aspecto de ‘poesia livre’, e os versos são longos. A primeira estrofe, claramente, traz os mais simples, a começar pelos de seis sílabas, e em todo o texto são crescentes, estendendo-se num ritmo enfático até 15 sílabas ou mais. Podemos destacar alguns: dos quais se busque a mão direita (1a. estrofe); manca é verdade e muito viajada (2a. estrofe); ou uma pessoa desconhecida anosa (6a. estrofe); dá coices os mais impulsivos perigosos; refuga qualquer mata-burro pomposo (5a. estrofe); sendo mariposado o poético como mariposeado (9a. estrofe).
A poesia ‘moderna’ costuma desprezar a métrica, mas a uso de quando em vez, e faço poemas de todos os tipos, como o soneto clássico (tenho alguns).
Para efeito informativo, recentemente, publiquei O DIA QUE NUNCA ACABA, livro de poesias, pela respeitável Scortecci Editora (São Paulo, Capital), onde está à venda; sairá pela mesma casa, no fim do ano, COLÓQUIO COM O SILÊNCIO o bucolismo poetiza a singeleza da vida, minha nona obra poética, para mim um feito nobre, por ser um poeta do interior.
Lembremos que a contagem da sílaba poética é diferente da tradicional. Na poesia, o ditongo pode ser considerado duas sílabas; vogais seguidas podem ser fundidas na mesma sílaba, e se conta apenas até a sílaba tônica da última palavra do verso. Ex.: mes/mo/queo/con/tex/to/não/pro/vees/sae/vi/dên/cia (6a. estrofe; 12 sílabas poéticas; 16 gramaticais, ou 17).
Eis o poema na sua íntegra.
TRIBUTO A MARIPOSA a traquejada mula de todas as lidas
sim eternamente ela
MARIPOSA de placidez bela
a burra de pesada lida
de pelagem colorida
cuja vida campesina
por uma anomalia corporal
difere de sua opositora
motivo por que é não coerente
a soberbia da palavra refeita
ou certo trocadilho surreal
dos quais se busque a mão direita
a qualificar essa besta fenomenal
manca é verdade e muito viajada
entende todas as vozes uma poliglota
uma joia rara a pérola da aldeota
cujas patas três delas cada qual
tem certa mancha branca areolada
uma somente a derradeira da esquerda
de tamanho mais curto pouco a se ver
uma marca amarronzada solitária
MARIPOSA adestrada mula da faina diária
dona de picado maneiro embora manquejante
esquipa macio a não se conhecer igual
mansa de coração por experiência
de servidão originariamente ancestral
por sua luta pregressa um lampejo à brasileira
Certificado Honroso ao Mérito um Bem Imaterial
um naco parrudo de rapadura caiana
dádiva humana por sua façanha rotineira
sua companheira de pasto com fartura
espécime a receber a mais alta honraria
de compleição robusta e cernelha alinhada
de anca fornida e aspecto trigueiro
tem como preferência onde costuma cochilar
qualquer moita fechada ou uma boa toiceira
às vezes sob a fronde de um altaneiro chorão
como dormita essa mula de pelame fouveiro
e por ser trotona de nascença a galope coitada
não domina a marcha ressonante
esperada de uma besta viandante
dá coices os mais impulsivos perigosos
ao lhe serem postos os arreios de viagem
não enfrenta um raso barro lamacento
não sabe abrir pequena cancela
nem se posiciona corretamente
no caminho tortuoso de sorrateira portela
refuga qualquer mata-burro pomposo
ou seixo rotundo na vereda calma à sua frente
ao contrário de MARIPOSA mula-madrinha
não se dá a ser montada por criança
ou uma pessoa desconhecida anosa
arisca de manejo um tanto vaidosa
mesmo que o contexto não prove essa evidência
só lhe sobressai a largueza da aparência
inda campeia a menor que a vizinha xucra aprendiz
a se saber qual delas é apta a cavalgar mais feliz
ecoa ao cair da tarde a Ave-Maria na igrejinha
na ala estreita de um sinuoso penedio
no estio nordestino de cada temporada
mas nada que desestimule o campeiro resoluto
nem a luta renhida da vida pastoril
muito menos o frio congelante da invernada
no labor cotidiano por um punhado de farinha
tem-se o dito e também o não-dito
em que uma faísca mais forte
que a labareda a arder sob o Sol a pino
não estorrica a olhos vistos sequer a folha seca
nem dá passagem a fatos a se comentar
vez que toda rara diferença implica puro deleite
e tudo o diferente costuma ser sublime
inda pela razão de MARIPOSA besta manca
de meia idade não ser burra anciã uma azêmola
mas garbosa a mais atenta nas labutas
finalmente de todo o finalmente
tendo misturado tudo o já misturado
sendo mariposado o poético como mariposeado
justo que a inverdade também não é mera fantasia
sob o silêncio de um sombroso coqueiro
ao lado do oitão da casa antiga de palha
isso é mil vezes encantador eloquente poesia
está ela serena à espera de mais uma batalha
MARIPOSA airosa no severo batente costumeiro
Obrigado e até a próxima.