“Meu carro teve perca total”, diz um cidadão. O uso de ‘perca’, como substantivo, é correto?

Na linguagem coloquial, muitos cidadãos, talvez, menos cuidadosos com sua fala, usam perca como substantivo, para designar dano, prejuízo, sinistro. A todo momento, ouve-se falar de acidentes com veículos em que seria comum o dano material. Para essa referência, a grande maioria usa perca e não perda, como recomenda o figurino gramatical. A diferença é que dicionários, complacentes, dizem que perca, s. f., é variante de perda.

De onde vem o lapso popular? Do dia a dia, do hábito de o cidadão repetir o que ouve em conversa sem ter a certeza de que o termo usado estaria correto? Se ouvimos ‘previlégio’ no lugar de privilégio, ‘carlota’ no lugar de calota; e pasme, ‘capu’ (do carro) no lugar de ‘capô’, vocábulo aportuguesado do Francês ‘capot’, que significa parte móvel da carroçaria de um veículo automotor que permite o acesso ao compartimento do motor, não podemos ficar espantados. Aliás, lembre-se de que se pode usar carroçaria ou carroceria.

Nobre profissional liberal dizia, sempre com palavras robustas, que a ‘carlota’ de sua caminhoneta (caminhonete, camionete) costumava perder-se na estrada esburacada. ‘Carlota’ é nome próprio, variante afetivo-diminutiva de Carla, nome feminino. O objeto a que ele se referia é a ‘calota’, peça semelhante a uma cuia que protege ou adorna a extremidade dos eixos dos automóveis (diz o dicionário). Estendendo a conversa, ‘capu’ não existe. Temos ‘capuz’, peça de tecido, variável no tamanho e na forma, usada como proteção para a cabeça, a qual meliantes têm como ‘esconderijo de sua imagem facial’.

Vamos aos termos iniciais, ‘perca’ e perda.

No nosso querido Nordeste, sofrido desde o Império de ambos os Pedros, ‘perca’ é o aborto natural. Alguma jovem mãe, por acidente físico ou violento estado emocional, ou em virtude de deficiência alimentar, perde o bebê nos dias de dar à luz, cujo verbo, ainda usado, é ‘parir’. “Minha mulher teve uma perca esta semana”, informa o jovem marido desolado.

Repetimos que algum dicionário diz, apenas, que ‘perca’, termo popular, é variante de perda (dano, prejuízo). Podemos acrescentar que ‘perca’, como substantivo, constitui um brasileirismo, da mesma forma que se usa ‘brabeza’ no lugar de braveza, ‘bassoura’ no lugar de vassoura, ‘barrer’ no lugar de varrer? Lembremos que grande parte continua a usar ‘caçar’ com o significado de procurar, buscar.

A flexão verbal nos ensina que ‘perca’ é forma subjuntiva ou imperativa, na terceira pessoa do singular, vinda de ‘perco’, presente do indicativo, pessoa eu. Perco (eu) forma: que eu perca, que tu percas, que ele perca, que nós percamos, que vós percais, que eles percam. Desse presente do subjuntivo, como ensina todo professor de Língua Portuguesa, forma-se o imperativo negativo: Não percas tu, não perca você, não percamos nós, não percais vós, não percam vocês. Frases comuns: Não perca as provas! Não perca o ônibus! Não perca o horário!

Perda ofereceria uma difícil pronúncia para o homem iletrado ou seria um termo de caráter exibicionista, inadequado na roda de amigos? Por isso, a preferência por perca?

Essa hipótese parece viável, pois, mesmo havendo expressão popular muito difundida – perda de tempo -, ouve-se muito dizer ‘Isso é perca de tempo’. No entanto, com o significado de ‘morte’, todos usam com segurança: A perda de uma pessoa querida. Em seguida, dizem: Deus a levou.

Perda é um vocábulo polissêmico (por ter muitos significados). No plural, fica muito bem ‘assentado’ em frases do conhecimento moderno: Perdas e danos, prejuízo patrimonial efetivo e certo, de ganho previsto ou de utilidade que alguém deixou de perceber por culpa de outrem, de quem, por via especial (a judicial), pode reclamar a devida indenização. Militantes na área do Direito conhecem e usam muito bem esse viés, amparados pela lei processual. Compêndios diversos nos dão esse conceito.

No campo popular, temos sem perda de tempo: imediatamente, agora! Ou vai ou racha!

Para fechar os dizeres de hoje, relacionem-se sinônimos de perda, presentes no dicionário e no linguajar que nos cerca: ato de perder, diminuição no volume, peso, valor etc.; prejuízo financeiro, derrota; destruição, ruína, aniquilamento, privação, desperdício; morte, falecimento. Seria, também, ‘dor moral’? Obs.: há um peixe, de água salgada ou doce, chamado ‘perca’ (cuja pronúncia seria aberta – pérca).

Basta, não?

Pausa: anti (contra) é prefixo muito usado: anticárie, antiderrapante, antifebril. Cuidado com a nova regra: anti-inflamatório, antirrugas, antirronco; seu ‘parônimo’ é ‘ante‘ (antes), que, também, tem largo uso: antebraço, antedatado, antemão, anteprojeto. Não se separam os termos: antealcova, antealvorar (madrugar), anteaurora, anteato, anteontem. E ‘entre’? Entressafra, entresseio, entressonho, entressorriso etc. Entrerriano é o que se acha entre rios; ainda: adjetivo pátrio que designa o natural de ou relativo a Entre Rios de Minas, e a Entre Rios, província argentina. A pessoa natural de Entre Rios, na Bahia, é entrerriense.

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