Quando um termo são dois na linguagem figurada se somos inventivos

Praticamente, todo vocábulo tem duas faces, a denotativa (registrada no dicionário) e a conotativa (sob o veio poético do criador). A conotação circula pelas beiras metafórica, metonímica, onomatopaica ou ironicamente etc. Até a catacréstica tem sua vez: o nariz do avião imbica na areia movediça.

A partir da dualidade semântica, a palavra se torna elo forte na comunicação.

Animais usam linguagem sonora e visual. O canto mavioso do pássaro é mutável: o amanhecer, o entardecer, o medo e o acasalamento são fatores diversos; na tempestade, é épico; na hora do amor, é poético; afetivo para dar o de-comer à cria.

roeu a corda alguma vez?  Não o chamam de roedor. Não é isso. Se o domínio linguístico não é seu condômino, pense em estar com a corda no pescoço. Roer a corda é o máximo do subterfúgio: faltar ao dever; dar uma escapadela pela tangente para não ser presa do credor.

Ainda temos cordas vocais? (par de lábios simétricos formados de um músculo e de um ligamento elástico situados de um e outro lado da laringe). Temos, agora, pregas vocais, dizem os doutos da ciência, que acabam interferindo no uso da linguagem. A rótula é patela. A linguagem muda na velocidade de o foguete ir à Lua, e pouco percebemos. A obra machadiana tem todo o seu vocabulário díspar dos dias atuais. Teve uma faceta; hoje, se convertida, teríamos outra. Transcrita de bom dicionário, a definição de cordas vocais é técnica, talvez inacessível a alguns. Por isso, quando um termo não traça um bom caminho para o uso comum, é-lhe criado outro. Nasce outra face.

No dia em que nasce o sapo, nasce a sapa, dito popular. Sapa, o feminino do anuro, o batráquio,  não existe. Designa a trincheira escavada sob um muro, obra etc., para derrubá-lo, entre outros significados. Não é vocábulo nosso; é empréstimo do Italiano zappa (enxada). Uma enxada cara não é uma cara inchada. Quanta asnice!

“É mesmo que um sapo”, disse Salita (nome fictício). Aluna atormentada, Salita dava trabalho na sala de aula. A direção conversava sempre com ela sobre seu comportamento, mas não obtinha resultados bons. Salita continuava a mesma pestinha, entretanto, não usava de calões para ofender. Um dia, Martim (também fictício), seu professor de Educação Física, a quem Salita era mais ligada, disse-lhe com impeto: “Salita, a partir de hoje, você não vai mais perturbar o professor; em especial, Pedrito (fictício)”. E lho apontou, pedindo a ela que revisse seus modos. Ela debochou, e saiu no molejo de sua idade: “Hum! É mesmo que um sapo”, e todos riem. O bordão ganha o mundo do colégio, tanto repetido, que Salita só sorri ao ver o mestre. Ótimo resultado!

Você gosta de broa? (Aliás, por que dizer fubá de milho? Temos fubá de outro cereal?) Não gosta? Dizem que fulana é uma broa.

O camponês costuma peneirar os mantimentos para deixá-los limpos. Na política, precisamos peneirar os candidatos para escolhermos um que faça alguma coisa.

O homem ficou doido e foi levado para o hospício (antes, chamado manicômio, ideia criada por um médico francês de sobrenome Pinel). Lá, é que ficou pinel de verdade! O criado anda doido de amor pela criada do patrão. Isso dá pano para camisa.

Doce de goiaba, especialmente, a goiabada-cascão, para compor o romeu-julieta, é uma delícia. Delícia, assim registrada por sua mãe não saber o que era isso; ouvia Letícia, o que a levou a optar por Delícia, um doce de menina.

O vaqueiro vai selar o cavalo. O compadrio vai selar um acordo entre os membros do sindicato. De selo em selo, a vida vai passando a limpo vários terrenos baldios para novos acampamentos humanos.

O ponto de ônibus. A guloseima não está no ponto. Veja a que ponto ele chegou! Os pontos são tantos, que a costura ficou frágil.

No banco, podemos sacar uma boa grana. Você saca o que nos diz a linguagem hodierna? Se entender que o vôlei saca, dirá que viu o agente sacar a arma para abater o meliante.

Há tanta manobra política, que pode levar o País à bancarrota. O bom motorista manobra o carro com extrema destreza. Cuidado com essa manobra! Isso é um engodo, e você vai cair na arapuca de pegar mocó.

Oba! Vou ganhar uma viagem a Paris. Obá, divindade nagô. Foi a bela esposa de Xangô? Descrevê-la, não sei.

No vestiário da loja, experimente com zelo o artigo de luxo europeu. Talvez, não lhe seja novidade: para você, todos os artigos são banais. Seu vestuário é sempre exótico?

O assessor do parlamentar fica ilhado tantas as perguntas capciosas lhe fazem. O terreno ilhado costuma ser fértil, e lá podem viver animais desconhecidos.

Descerrar o comércio é abrir-lhe as portas às 8 da manhã. Cerrar, não serrar a madeira, é encerrar-lhe o expediente no fim do dia.

A mulher polaca costuma ser muito bonita. A nossa Constituição de 30, tantas foram suas importações ideológicas, que se tornou a Polaca.

Agudo é sinal gráfico que alguns abandonam: (ela) medica (assiste o doente); a médica inda não chegou, presa no trânsito. Transito por aqui, e não me atendem. É um agudo sofrimento. A dor aguda o leva ao desespero.

O arraial de preços baixos. “São João, São João, acenda a fogueira no meu coração” (música gonzaguiana).

The space is over. Ficou maneiro? Tantas as faces, que uma palavra parece muitas.

Professor, este texto lhe serviria de trampolim para mais uma de suas boas aulas?