A regência verbal é um bicho-de-sete-cabeças? Ou é um bicho-de-pé, que incomoda?

A palavra ‘bicho’ nasceu do Latim Vulgar ‘bestiu’, que designaria qualquer animal capaz de incomodar o ser humano. Hoje, largamente usado, bicho tem vasta acepção semântica; a qualquer momento, se algo nos irrita, chamamo-lo de ‘bicho’. Animal, inseto, pessoa, doença etc. Mas usada sob a face afetiva da linguagem, essa palavra de pronúncia ultrassonante – ‘bí-chu!’ – passa a ser empática: Bicho, onde tu ‘andava’ esse tempo todo que sumiu?

A entrada hilária é para aliviar o peso, mas que a regência verbal incomoda, incomoda muito, e deixa muita gente atônita.

Resumidamente, a Gramática diz que a regência verbal é a relação de subordinação ou de dependência entre os termos de uma oração (Gosto de você) ou entre as orações de um período (Gostaria de que você viesse até aqui para conversarmos).

Na teoria, tudo é fácil. Na prática, ‘o bicho’ pega. Os estudiosos tentam cada vez mais superar as dificuldades com exercícios didáticos nos compêndios, os não-estudiosos (por dedução) vão tocando o barco de acordo com a maré – dando certo, deu; não deu, amém; e os não-preocupados ou desconhecedores do assunto nem percebem como esse bicho-de-porco penetra em nossa pele e faz uma cavidade tosca em nossa linguagem.

Volvendo os olhos, pode-se ouvir alguém dizer ‘Qual é a firma que você trabalha?” Vários verbos intransitivos, cujas ações indicam lugar, exigem preposição. O fato de não ser usada constitui erro gramatical.

Trabalhar a firma‘ teria sentido se o administrador a trabalhasse para torná-la eficiente, trabalhando a equipe para fazê-la produzir mais.

O questionamento é: em que firma o empregado presta seus serviços?

O lavrador trabalha na Natureza lavrando o campo; o professor trabalha na escola ministrando suas aulas; o médico trabalha na clínica/hospital assistindo os pacientes etc.

Esse é o aspecto de um trabalho, o  ato ou efeito de trabalhar; exercício material ou intelectual para fazer ou conseguir alguma coisa. Bicho, a regência verbal dá um trabalho danado!

É o bicho!

Algumas frases em que a ausência da preposição, caso de regência verbal, pode tirar a boa linguagem do sério. Temos enorme dificuldade de usarmos construção frasal cuja redação exige ‘em que, de que, com que’ e respectiva forma desenvolvida (‘no qual, na qual, do qual, das quais’ etc. ).

  1. A escola que eu estudo. O falante está sob a tutela da lei do menor esforço. Ele quer dizer a escola em que estuda. A escola onde estuda. A escola na qual estuda. O uso de ‘em que, no qual, na qual, nos quais, nas quais‘, conforme o antecedente, não é hábito entre os usuários da Flor do Lácio no Brasil.
  2. A casa que moramos. Ninguém, certamente, ‘moraria a casa’. Todos moramos nela, na casa, na nossa casa. A casa na qual moramos é muito espaçosa.
  3. O bairro que meu tio reside. Reside-se em um lugar. A residência fica num bairro. O bairro no qual (em que) meu tio mora é bastante arborizado.
  4. A pessoa que eu mais gosto lá em casa é minha irmã Maria Bonita. Quem gosta, gosta de alguma coisa ou de alguém. A pessoa de quem eu mais gosto… A pessoa de que eu mais gosto… A pessoa da qual eu mais gosto lá em casa é minha irmã Maria Bonita.
  5. ‘Limpe o local que será aplicado o produto’ (mensagem de uma embalagem de produto de limpeza). O produto será aplicado em um local, em uma superfície… Aplica-se o produto na pele de um animal, no canto em que a barata passa. ‘Limpe o local em que (no qual) será aplicado o produto’. Em se tratando de uma empresa, que teria obrigação de usar uma linguagem escorreita, a gafe linguística pode comprometer a sua imagem e, consequentemente, a qualidade do produto que fabrica e vende.
  6. A pessoa que eu me relaciono. Quem se relaciona, relaciona-se com alguém, com outrem. A pessoa com a qual eu me relaciono é muito exigente (a preposição com é exigência do verbo relacionar).
  7. O filme que eu assisti. No sentido de ver, de presenciar, assistir exige a preposição a – Assistimos a um bom filme na sessão de ontem. O filme a que (ao qual) eu assisti tratava da história de Madre Teresa de Calcutá, a albanesa.
  8. A cidade que eu cheguei. Chega-se a um lugar. A cidade a que (à qual) eu cheguei estava em festa. O uso costumeiro de se dizer “Cheguei na cidade” implica uma linguagem popular há muito ‘comprometida’.
  9. Dia 15, será realizado o festival. Melhor: No dia 15, será realizado o festival. O dia em que será realizado o festival é 15. Obs.: no: em+o. Pausa: Há 12 km fica o local do acidente. Daqui a 12 km fica o local do acidente.