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O preso, que evadiu-se da cadeia. O preso, que se evadiu da cadeia. Qual a melhor redação?

A colocação dos pronomes átonos – me, te, se, lhe, o, a, nos, vos, lhes, os, as – (antes, depoisno interior do verbo), na oração, tem sido obstáculo ao bom uso da norma culta.

Próclise (antes): Gostaria de que me ensinasse a escrever. Ênclise (depois): Ensine-me a escrever. Mesóclise (no interior): Ensinar-me-á a escrever sempre?

Deve-se concordar que as regras são exigentes, mas, por um lado avesso, há certo descuido de usuários cultos ou descumprimento por mero capricho de desobediência à Gramática Normativa para ser diferente: “Não dou ousadia, faço como quiser” (atitude tácita). Se não tácita, implícita ou subentendida, já que domina bem a linguagem culta em outros momentos.

Infelizmente, não é possível enxergar diferente: a maioria dos periódicos que circula no interior do País comete deslizes nesse aspecto, em especial quando noticia crimes locais: O criminoso que ‘evadiu-se do presídio‘ (sic).

O pronome relativo ‘que‘ (desdobrado em o qual, a qual, os quais, as quais, conforme o texto), é atrativo; exige o pronome oblíquo átono ‘se‘ seja proclítico: O criminoso que se evadiu do presídio. Não enclítico, como está. A eufonia determina essa exigência.

O que fica mais agradável ao ouvido: Que evadiu-se? Que se evadiu?

Alguns demonstram desconhecer essa boa sonoridade ou a consideram sem importância.

A Gramática Normativa, como é sabido de quem burila o idioma pátrio, regulamenta as três conhecidas colocações dos pronomes oblíquos átonos: l. Antes do verbo, desde que a frase não comece pelo pronome átono e que haja termo atrativo: É preciso que ele se mantenha calado. Obs.: em frase em que não há termo atrativo, a próclise também acontece, mas não se trata de obrigatoriedade: Eu o observo à distância. (Normal: Eu observo-o à distância.) 2. Depois do verbo (colocação normal, evitando-se que a frase comece pelo pronome oblíquo átono): Mantém-se calado. 3. No meio do verbo (em dois tempos: futuro do presente e futuro do pretérito do modo indicativo, desde que não haja termo atrativo): Manter-se-á sempre calado. Manter-se-ia calado se não fosse obrigado a falar.

O objetivo de agora não é enumerar as regras em si, mas comentar a troca da próclise pela ênclise ou vice-versa.

“Espero que você coloque-se em meu lugar”. Eis a ênclise indevida: ‘que’, pronome integrante, é atrativo: “Espero que você se coloque em meu lugar”.

Mais fácil interpretar, e mais audível a dicção.

Teoricamente, tudo seria fácil e aceitável; na prática, não; e o número de frases que ‘desacatam’ a regra é extenso. O pronome enclítico é o mais insubordinado, para se usar uma metáfora: é mais gostoso começar a frase com ele: Se liga, Brasil! Me fale mais tarde. Me avise se for viajar.

Esse pronome proclítico seria enclítico. Mas essa próclise é sintomática, caracteriza nossa cultura popular, nossa liberdade de expressão, nosso desapego à regra que nos aborrece.

Um enunciado jornalístico poderia ser obediente, mas pesa para se pensar e dificulta o marketing, por isso, no lugar de ‘Liga-se nessa, Brasil!’, opta por ‘Se liga nessa, Brasil!, aumentando o ibope propagandístico.

Estas, todavia, pecam: Para onde leva-o? O que narra-se é inusitado (estupro de criancinha de dois anos). Ela, que mostrou-se verdadeira mentirosa, foi absolvida.

Há uma ressalva: ‘Se liga’, ‘Me diga’, ‘Me avise’, próclises sem que haja termo atrativo, é típica da fala brasileira, sob o olhar da espontaneidade, na linguagem ‘caseira’ e abundante na popular: a regra de a frase não começar pelo pronome átono está morta.

É um contraste com o uso cerimonioso e culto da ênclise (no discurso polido, no debate intelectual da linguagem escrita, em livros e revistas de grandes textos).

Um e outro são aceitáveis: em casa, “Me passe a salada, por favor”; no púlpito, com o orador inflamado e irônico, “Me faça o favor, Excelência, de cumprir a lei”, diria o advogado ao Juiz costumeiramente relapso.

A terceira colocação, a mesóclise, tem-se tornado pouco usual. Na escrita, tem sido rara; na fala, faria doer os tímpanos: “Far-me-á o obséquio de amanhã não me chegar tarde”.

No lugar de se escrever “Amar-te-ei sempre”, seria prático “Eu te amarei por toda a minha vida”, confirmando-se a pecha de que a mesóclise é chata e pouco espontânea. Abominá-la e deixá-la cair em desuso tem sido o melhor caminho.

Isso basta.

Pausa: 1. Um letreiro: “Conheça nossa linha de móveis planejados”. Seria possível eliminar-se o plural ‘planejados’, que concorda com móveis, e ser usado o singular feminino (planejada), concordando com linha? Sim, mas depende de o estilo do redator adotar essa vertente: Conheça nossa linha planejada de móveis. Conheça nossa linha de móveis planejada. 2. Há dúvida quanto à reforma ortográfica: tem aparecido “Faleceu de parada cardio-respiratória” (sem acento gráfico no primeiro adjetivo e com uso do hífen). Cumpramos a regra: “Faleceu de parada cardiorrespiratória” (sem o hífen, dobrado o R para manter a pronúncia). Se couber separado por hífen, o acento é obrigatório: cárdio). Cardiocirculatório, cardiorrenal. 3. Prefeitura faz retirada de ‘sem-tetos’. O plural de ‘sem-teto’ é incorreto: Prefeitura faz retirada de sem-teto. Havendo dúvida se seria mais de um, faz-se a reconstrução da frase: Prefeitura faz retirada dos sem-teto. ‘Sem-terra invade fazenda’ (um); ‘Sem-terra invadem fazenda’ (vários). O sem-terra (singular). Os sem-terra (plural). Seria correto dizer ‘Os sem-pressas’ chegaram? Não.

Agradecimentos a quem me leu até o fim.

 

 

 

 

João Carlos de Oliveira

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