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Esta é forte: ‘E aí eu se me lasquei…’ Existe explicação, professor, para essa pérola?

Existe, mesmo que pareça uma frase estranha. Não é calão, tampouco é pejorativa. É o modo espontâneo da linguagem cotidiana – falar sem se preocupar com a norma gramatical e deixar que os ouvidos do outro se ‘danem’ por que o recado está sendo dado.

Podemos dizer que esse erro é corriqueiro, já que muitos cometem a mesma barbaridade linguística – praticam a mistura de pessoas gramaticais no mesmo enunciado. “O povo falaram. Nós se mandamos. Eu se comunico com todos”.

Exemplo contumaz é este: “Vem pra cá você também“. De onde vem essa riqueza vocabular e gramatical? Há um carro volante divulgando diversos anúncios propagandísticos. Quase sempre, toda a fala do honroso locutor tem vícios de linguagem. Não há nenhuma preocupação com a concordância verbal (‘Acabou de chegar muitos produtos’), com a regência verbal (‘Chegou nesta cidade…’) e um bocado de outros recursos pouco estilísticos para o poeta, mas grandiosos para se dar um recado ao veio popular – é que o erro é de todos e ninguém se preocupa com detalhes que só professor de Língua Portuguesa sabe exigir (em suas cansativas aulinhas). Esse seria um pensamento dominante?

“Vem” é o imperativo afirmativo do verbo vir para a pessoa tu. Eu venho, tu vens (presente do indicativo). Para ser formado o imperativo afirmativo, corta-se a desinência verbal dessa pessoa – tira-se o S. Resta, pois, ‘vem’. Nada errado até aqui. E o ‘você’ logo em seguida? Não pode por que o sujeito é ‘tu’, para haver a concordância verbal. A frase, portanto, muito usada em anúncios, é viciosa, mas é aceita em todos os níveis socioculturais e socioeconômicos, e ninguém ‘dá por fé que ali há um erro gramatical forte’ – a mistura de pessoas verbais na mesma frase não é permitida pela regra gramatical. Qual o conserto? Pessoa tu – ‘Vem pra cá tu também’. Mas essa não é feia? Pessoa você – ‘Venha para cá você também’. A questão é que nenhuma dessas duas é usada. Acostumamo-nos com a tradicional e achamos horrorosa a forma correta. Qual você usa?

A música popular nunca usa as pessoas tu e você conforme a norma gramatical culta. A mistura é supimpa sob a tutela da ‘licença poética’, passando batida pela cabeça de uma maioria – tudo está bonito, tudo está correto. E o que o comentarista tem a ver com isso? Diga a ele que se cale, que quem manda é o cotidiano!

‘Você tem chance. A empresa te oferece muito mais’. Note aqui a mistura. Corrijamo-la: ‘Você tem chance. A empresa lhe oferece muito mais’. ‘Tu tens chance. A empresa te oferece muito mais’. Escolha a sua.

‘Corre aqui e compre que tá barato’. Para a pessoa tu – Corre aqui e compra que tá barato. Para a pessoa você – Corra aqui e compre que tá barato.

‘Eu te vi ontem na festa. Você estava linda’. As respostas são estas: (Para o tratamento ‘tu’) – Eu te vi ontem na festa. Tu estavas linda. (Para o tratamento ‘você’) – Eu a vi ontem na festa. Você estava linda.

Se muitos exemplos da linguagem comercial não seguem a regra, se muitos do nível culto não se importam com a uniformidade de tratamento, se a licença poética ou de redação usa e abusa, como o cidadão que nada conhece de Gramática Normativa iria ter o mérito de se expressar de acordo com as regras? Será que ele sabe que o pronome ‘me’ pertence à primeira pessoa do singular (eu)?, será que sabe que o pronome oblíquo ‘se’ tem o uso restrito à terceira pessoa do singular (ele, ela)? Ele saberia usar, mesmo de forma figurada, ‘lascar-se’ como verbo pronominal? Ficam bonitas as flexões ‘Eu me lasco, tu te lascas, ele se lasca, nós nos lascamos, vós vos lascais, eles se lascam’?

Lascar, caro visitante, está no dicionário como verbo transitivo direto – quebrar em lascas, tirar lascas de. Sentido popular: dar, aplicar (golpe) – lascar um tapa. Como verbo intransitivo e pronominal, tem a conotação de ‘fender-se’, o que, figuradamente, seria ‘dar-se mal’, ‘partir-se em lascas’. Portanto, não é errado o uso de lascar na frase-título. O problema seria o uso do pronome ‘se’ ao mesmo tempo do pronome ‘me’ – ambos juntos não se fundem. Diga ‘E aí eu me lasquei’, ‘Ele se lascou’, ‘Nós nos lascamos’ etc. Pode ser feio, mas é o correto.

Vamos concluir: ‘Fortaleça-se’, que seria bíblica, não tem boa redação. ‘Fortalece-te’. Ou ‘Fortaleça-se’. Outro exemplo: ‘Então, corre. Aproveite’. Formas corretas: ‘Então, corre. Aproveita’ (tu). – ‘Então, corra. Aproveite’ (você). Notou as diferenças?

 

João Carlos de Oliveira

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