0

Alguém daí sabe o que é tramela? Ou taramela? Viu uma de perto na fazenda do vovô?

Nossos costumes nos representam, e daí surge a linguagem regional interessante, que, também, nos autentica. Vem ao ar uma diversidade que impressiona. Surge a cultura que nos conduz a um tipo de falar, e, em processo simbiótico, esse falar nos leva a uma cultura regional ou interiorana curiosa, ainda desconhecida ou pouca valorizada.

A tramela, presa a um prego ou parafuso, gira para qualquer lado e ‘tranca’ porta e janela. Pode vir por dentro (fecha por dentro) ou por fora (fecha por fora). Normalmente, foi sempre de madeira; rústica e prática, tem as marcas da mão que a impulsiona todos os dias. Assim, foi ou ainda é usada em muitas casas simples, em especial, na área rural.

Eu a conheci na roça, na fazendinha de meu avô materno, João Elias, no Garajau (depois da Água Branca), no distrito de Cachoeira Grande, em Jacobina, Bahia.

Faz algum tempo, isso quando tinha meus nove, dez anos; hoje, ainda sou um menino crescido, com certa idade. Vou além da maioridade, muito bem vivida.

Essa roça, com pequena chácara ao fundo, tinha uma casa de enchimento (‘enchumento’, para outros) quase à beira da estrada onde passavam bois, cavalos, gente de perto e de longe. Era a passagem certa para os moradores que seguiam em direção de Salaminho, hoje distrito de Serrolândia (antigo Serrote, que foi distrito de Jacobina). Salaminho, chamado Salamim por outros, tem sua história de vida, local de fazer feira maior, de carne-seca, farinha, rapadura, e comprar objetos para uso no campo, quando Cachoeira Grande não tinha esses produtos.

A casa, ao lado do curral, coberta de telha cumbuca, tinha enorme varanda comprida, na frente, onde poderia se abrigar quem pedia ‘passagem’ por uma noite.

Meu avô, a esposa, ‘mãe Dindinha’, e os filhos. A contagem pode ser esta: 6 filhos. Erundina, a mais velha, que faleceu de parto, Manoel, o mais velho dos homens, minha mãe (Maria Saloméa), Isaías, Joaquim e José (Zezinho Papagaio).

Costumavam passar por ali alguns desconhecidos, que seguiam viagem em busca de oportunidade (trabalho braçal, o que a região lhes oferecia). Seriam, na linguagem hodierna, retirantes. Lembramo-nos de Vidas Secas (1938), do majestoso Graciliano Ramos, dono de linguagem enxuta. O retirante sofria como ninguém.

O grande escritor retrata com maestria estes momentos.

O vaqueiro Fabiano, ‘fugitivo’ da seca, analfabeto e lacônico; a esposa, Sinhá Vitória, sabia fazer algumas contas e sonhava com uma vida melhor, como ‘ter um colchão igual ao do Seu Tomás da Bolandeira’, homem que votava e era modelo de pessoa que sabia das coisas; os dois filhos, sem nome, ‘o mais velho’ e ‘o mais novo’; a cadela Baleia, ‘membro da família’, consciente até na hora de sua morte, e o Soldado Amarelo, intragável intermediário entre a pobreza de Fabiano e a riqueza de seu patrão. Inconformados com a miséria em que viviam, Sinhá Vitória e Fabiano, os filhos e Baleia foram em busca de oportunidade na cidade. O resultado foi o fracasso, advindo da seca e do abandono político-social deixado pelo Poder.

Baleia morreu no meio do caminho. De quê? De que morreu? Certamente, debilitada pela fome, já que não teve forças para seguir a jornada dura. E os retirantes continuaram a saga, triste e épica, como acontece com outros em tempos ruins no Nordeste castigado pela seca e abandonado pelos políticos que só prometem. Outros ficam à mercê das decisões de alguns coronéis, verdadeiros valentões, que não seriam cabras-machos para enfrentar Virgulino, sorridente ao lado de Maria Bonita. De fato, bonita, tornou-se cangaceira ‘engabelada’ pela lábia de Lampião, que gostava de joias raras, e algumas foram dadas a ela, o que a atraiu.

Também sou ‘fugitivo’ da violência, em busca de respeito, tremendo de pena dos que obstruem a acessibilidade do transeunte nos passeios públicos (obstruídos por veículos, bicicletas e caixotes de papelão estacionados nas calçadas).

Estou à procura de uma tramela velha que encontrei no que restou da casa de meus avós maternos no Garajau.

“Homem de Deus! Pedimos só uma passagem por uma noite”, dizia alguém do grupo, pedindo pousada a meu avô, que lhes concedia, embora sem conforto. No chão mesmo, mas debaixo de um telhado, ‘dormiam’. No dia seguinte, os agradecimentos, e mais uns víveres: rapadura, carne-seca assada, farinha, e uma moringa, a ‘quartinha’ com água (enquanto não encontravam uma cacimba ou tanque de água limpa para encher o carote no lombo do jumentinho, ou mesmo aquela água misturada à urina e dejetos de bois, cavalos, muares e outros bichos), mas servia. Verminose seria algo desconhecido ou que não se importavam com ela.

A taramela, a trava (por trás ou na frente) para fechar portas e janelas, nasceu de ‘trabella’ (pequena trave), do Latim. Parece termo indígena, assim como temos o radical ‘ita’, pedra, presente em tantos nomes bonitos de objetos, lugarejos, distritos e cidades: Itaoca, Itabela, Itamonte, Itapeva, Itaporanga, Itabatã, Itanhém, Itanhaém, Italva, Itaici, Itaguara, Itapitanga, Itapiranga, Itapura, Itapuã. (Paremos, porque a lista é grande.)

Com nomes modernos de tranca, ferrolho e outros, a taramela seria da norma culta, e tramela, do falar cotidiano, o popular.

As imagens que temos de portas e janelas com tramelas são variadíssimas. O curioso é que hoje quase ninguém usa o termo, a não ser que estejamos numa fazenda em que um exemplar é usado ou encontrado: a tramela da cancela do curral, da porta do cômodo onde são guardados os arreios e o material usado na roçagem, na carpina, no feitio de cercas etc.

“Vá lá, meu filho, gire a tramela, abra a porta e pegue enxada, foice, machado, cavador, porque hoje vamos trabalhar muito”, dizia meu avô.

E ainda nos vêm à mente: o trabuco, o trambolho, a quartinha, um lito de farinha ou o prato de cinco litos, a prateleira da despensa, o bilro com que minha avó fazia as rendas, a bimba do menino barrigudo (miudinha, assim como ele). Hoje, um bilião de Reais surrupiado (um bilião é pouco, são bilhões). Cumbé, outro nome da lesma. Cumbuca (‘vaso’ de cabaça com uma abertura para colocar água, ou servir pendurado para guardar os trecos que não se usam mais). Macaco velho, que é sabido, não mete a mão em cumbuca (dentro pode haver cobra, como a surucucu ou a pico-de-jaca). A cuia para beber água fresca da cacimba. Terreno argiloso, bom para fazer telhas.

Fiquemos com esses exemplos por hoje, que nos auxiliam a entender um pouco do regionalismo, rico e variado.

O objetivo maior é trazer à tona a ‘tramela’, tão pouco usual hoje, esquecida pela ‘modernidade’; se perguntarmos a alguém se a conhece ou a tem em sua casa, acharia isso muito estranho.

O vocabulário ‘roçaliano’ nem sempre é conhecido do homem citadino, que pode não conhecer os costumes do rurícola. Terreiro, para secar mantimentos; alagadiço, onde a vaca pode ficar atolada; carne ‘muciça’ (variante de maciça, chã-de-dentro, chã-de-fora) é mais gostosa.

1.”Escuita aí, minininho! Aqui é assim: levantá cedo pra trabaiar, tirar leite da vaquinha craúna, dar dicumê pros porco, cuidar das galinhas e di outros animá, fazê o café e mais arguma coisa. Visse?!”

2. Um cacoete linguístico esquecido em artigo de ‘tresnantonti’: “E aí eu peguei e falei com ele: não ‘vem’ com essa, não! E aí ele pegou e falou assim: quem manda aqui é eu”.

3. O imperativo, na maioria das vezes, não vem flexionado na pessoa certa em anúncios radiofônicos ou televisivos em todo o Brasil. Já que nosso tratamento mais comum é na pessoa você, a forma verbal não pode ser confundida com a da pessoa tu. Venha cá! (E não ‘vem’, imperativo para o tratamento tu.) O texto começa a ser articulado em ‘você’, pronome repetido várias vezes, mas a forma verbal no imperativo para esse caso não vem correta. “Corre lá e compra, que está barato” (tu). Corra lá e compre, que está barato (você). “Mostre seu sorriso, vem pra Clínica …” (vem, tu). Mostre seu sorriso, venha para a Clínica…” (você). “Corre e aproveita” (tu). Corra e aproveite (você).

João Carlos de Oliveira

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *