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Lotérica ‘pé-quente’ ou ‘pé quente’? Com hífen ou sem? Adjetivo ou substantivo composto?

Há expressões que, na linguagem popular, abundam, e o dicionário as pode restringir. ‘Pé-quente’ seria uma dessas? Quantas vezes tem sido vista nos compêndios didáticos?

A todo o momento, quando o apostador se refere à sorte, a expressão ‘pé-quente’ vem à tona como salvadora, ou a sua oposta, ‘pé-frio’, para designar azar. Comentários ‘sábios’, alguns com tacadas certeiras, tomam conta do pedaço, momento de o sortudo querer evidenciar-se, sabedor das manias que o fazem ganhador.

O pé-frio, coitado!, como de costume, fica calado a ouvir ‘verdades absolutas’, às vezes, pura falácia, tão longe a possibilidade de o loquaz ser vitorioso. Se alguém fosse tão felizardo assim, certamente, não estaria passando sua ‘sorte’ para um desconhecido, esse o lado típico do fanfarrão jogador, que nem sempre abocanha prêmios.

O verbo ‘abocanhar’, neste momento, não é usado com a mesma semântica que registra o ato de o cão ‘pegar’ o osso e sair estabanado levando o troféu. Abocanhar, nesse naipe, é ter sorte nos jogos de azar ou tomar para si algo que seria habitual em seus negócios, apoderar-se do ‘privilégio de ter mais que o vizinho’, empresa que tudo ‘conquista’, hegemônica que é, e pronto! A isso se chamaria ‘oligarquia do Poder’, monopólio que incomoda o direito coletivo.

Voltemos ao que mais interessa sobre o pé-quente.

A pronúncia desse termo não causa nenhum transtorno ou dúvida, mas a grafia nem sempre é estampada como a norma gramatical recomenda.

“Esta Loteria é pé quente”, diz o anúncio (mostrando o porquê). Além da ausência do hífen, entendemos o que é ‘loteria’, não uma espécie de jogo, mas a Casa Lotérica onde são pagos boletos diversos e feitos jogos das loterias administradas pela Caixa Econômica Federal.

A grafia correta, ‘pé-quente’, palavra composta hifenizada, portanto, precisa ser internalizada. Pé-quente (pé-frio), substantivo composto formado por um substantivo simples (pé) e um adjetivo (quente). Plural: os pés-quentes (os pés-frios). ‘Quente’, o que tem sorte no jogo; ‘frio’, o que não a tem.

Se usarmos ‘Lotérica pé-quente’, o segundo termo tem valor de adjetivo, composto, embora ambos flexionem em número, o que não é comum nessa classe gramatical. Camisa azul-escuro, camisas azul-escuros; estudos luso-brasileiros. Mas menino ‘surdo-mudo’, meninos ‘surdos-mudos’, mesmo padrão como substantivo composto: o surdo-mudo, os surdos-mudos.

Frisemos expressões com o mesmo valor gramatical de pé-quente (no plural): cachorros-quentes, guardas-noturnos, arrozes-doces.

Assim, este blogueiro entende ‘pé-quente’. Se vier acompanhada de substantivo, torna-se adjetivo (composto) em que os termos flexionam-se simultaneamente: sujeito pé-quente, sujeitos pés-quentes. Sozinha, deve ser entendida, tão-somente, como substantivo composto: os pés-quentes (os pés-frios), como os dedos-duros (alcaguetes).

Nesse diapasão, existem ‘pé-fresco’, gaiato que costuma aporrinhar o cidadão simples; pé-leve, indivíduo ligeiro, que poderia ser enganador; pé-espalhado, pobre coitado, indigente; pé-rachado ou pé-rapado, o que vive na extrema pobreza.

E surgem outros, talvez, inusitados: pé-encarnado, pequeno inambu que vive na caatinga, também chamado pé-vermelho, similar ao pé-roxo, um pouco maior. Pé-coxinho, brincadeira infantil; pé-cascudo, satã. Em todo o País, o regionalismo linguístico registra ‘pés’ disso e daquilo. Basta que o leitor faça sua relação. O mineirês tem os seus, o baianês e o gauchês também etc.

Quando não é formado por, apenas, dois vocábulos, aparecem alguns em que a preposição ‘de’ comanda o sentido do segundo termo: pé de moleque, o pé do moleque, mas pé-de-moleque, o doce regional, a guloseima. A partir daí, a grafia sem hífen tem um significado – pé de meia (o par da meia); com hífen, outro: pé-de-meia, o pecúlio, a poupança. Assim, Pé-de-Vento, epíteto do animal esperto, que pisa mansinho, e sabe sair-se bem da enrascada, e ‘pé-de-vento’, a ventania forte, o tufão. Pé-de-cana, beberrão; pé-de-cachorro, desprezível; pé-de-chinelo, pobretão. Os mortos-vivos.

A palavra ‘pé’ em nosso riquíssimo vocabulário, vinda do Latim ‘pes, pede, pedi‘, surge em muitos termos: pedialgia, pediforme, pedúnculo (pé pequeno), que aprendemos no curso primário, quando estudamos Biologia, da mesma área semântica de suas irmãs ‘pedestre, pedal, pedaleira’ etc. O galicismo ‘pedicuro’ bate no mesmo caminho. O cuidado é que não se confunda com ‘pedo‘, usado em termos técnicos relativos a ‘criança’: pedodontista, pediatria, pedófilo (que comete o crime de pedofilia, uma vez que perdeu o bom sentido original, ‘condutor da criança ao bom caminho’, ‘o amigo da criança’), e ainda: pedagogia, pedagogo etc.

Fazendo parte de outras pérolas, ‘pé’ está presente em expressões idiomáticas variadas, de bom uso regional.

‘Apertar o pé’ não é ‘prensá-lo’ forte com os dedos, mas apressar-se, andar rápido.

‘Estar com o pé na cova’, em eufemismo balofo, é estar prestes a ir morar na cidade dos pés-juntos (falecer).

‘Fazer pés de alferes’ é querer ser galanteador, namorador, namorar, enamorar-se da donzela mais linda do lugar.

‘Ir aos pés’, como quer a gauchada, é ‘defecar’, o mesmo que ir à latrina do baianês sem papas na língua.

‘Pé de ouvido’, o mesmo que ‘pé do ouvido’, e ‘pé-de-ouvido’, uma tapa ou tapona com mão fechada, que pode ‘derribar’ o sujeito fraco.

‘Pé de moleque’, o pé do menino que sabe ser ligeiro com a bola ou ágil nas suas passadas; ‘pé-de-moleque’, o doce regional (dito antes).

Um exemplo clássico que auxilia a entender que ‘pé-quente’ deve ser com hífen é ‘dedo-duro’, o alcaguete, ou xis-nove. Sem hífen, ‘dedo duro’ é o dedo em riste, embora a visão possa ser similar: ofender, denunciar. Estar com ‘o dedo duro’ pode indicar uma ‘postema’, aférese de apostema, abscesso (cuja pronúncia mais comum no meio rural é ‘pustema‘, e esta, na linguagem do interior, doença brava que o deixa sem função).

No Nordeste, ‘o pé-duro’, sendo animal, é aquele que não tem origem pura, animal crioulo, gado sem raça definida. Assim, ‘braço-forte, mesa-redonda, onça-pintada, salário-minimo, fio-dental, peça-morta’, substantivos compostos em que o primeiro elemento é um substantivo simples seguido de um adjetivo, cujo plural flexiona ambos os elementos: braços-fortes, mesas-redondas etc., cujo significado se difere da expressão sem o hífen: o braço forte, a mesa redonda, o fio dental etc. A grafia feira-livre (local em que mercadorias são vendidas ao ar livre) deve ser clara, como má-fé (atitude de alguém que usa segundas intenções para prejudicar a outrem, como no estelionato), saia-justa (que gera um entrevero, uma briga de difícil resolução) e não a saia justa, peça do vestuário feminino que se destaca da comum ou tradicional.

Está publicado mais um capítulo do nosso esplêndido Português cotidiano.

João Carlos de Oliveira

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