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Conhece termos arcaicos? ‘Fastio, ladino, higidez, escabiose, jabá’ seriam alguns deles?

Podem não ser esses os que você selecionou, porque cada cultura e conhecimento têm sua visão de mundo, embasada no linguajar regional. Todos carregam sua semântica, que seria interessante, mas o tempo faz com que sejam chamados ‘palavras arcaicas’, ou que caíram em desuso. Eis o arcaísmo linguístico, cujo oposto é o neologismo.

O que é um termo arcaico? Aquele relativo a épocas antigas, que não está mais em voga. Obsoleto, antiquado, desusado.

Um colega do curso de Direito gostava de chamar alguém que, para ele, seria ‘obsoleto’ de ‘retrógrado’. Tudo era isso. Qualquer fato fora do padrão dele teria essa qualidade; se você pedisse um misto-quente no lugar de um bauru, levava o nome. Pior seria se pedisse misto-frio, e tome-lhe ‘retrógrado’, o obsoleto. Até o termo ‘hot-dog’ seria motivo para desqualificar o colega de pouca modernidade. Não seria ‘roupa de praia masculina’, mas sunga; para a mulher teria que ser ‘canga’ no lugar de ‘saída de praia’. Não me lembra se fazia referência a ‘fio-dental’, a minicalcinha bem chegada, que tapava pouca coisa, mas todo vestuário diferente de sua visão ou fosse grande seria obsoleto. Toda roupa que não fosse ‘modelo novo’, ser-lhe-ia ‘retrógrada’, o que adorava repetir; às vezes, usava ‘arcaico’, mas ele, jovem de cultura ultramoderna, usava, a torto e a direito, o adjetivo retrógrado.

Esse caso se assemelha ao de outrem que aprendeu a usar ‘stress’, e tudo na vida é isso: Estou com ‘stress’. Não vale usar ‘estresse’; tem que ser ‘stress’. A grafia aportuguesada para ele seria sintoma de atraso. Estranho! Parece de uma época em que o caubói tinha que dizer ou escrever ‘jeep’ no lugar de jipe, fumando ‘Hollywood’. Na atualidade, alguns usam com abundância ‘surf’, admitem ‘surfar, surfando, surfista’, mas não aceitam ‘surfe’, a forma aportuguesada, por não ser chique, esquecendo-se de que toda grafia aportuguesada seria moderna ou atualizada em Português. Para ele, o contrário.  Esse é que um sujeito arcaico por excelência. Só vale a grafia ‘original’. Estranho!

O arcaísmo linguístico consiste em palavra, forma ou construção frásica em desuso na linguagem corrente, remanescente de períodos anteriores.

E por que acontece esse fenômeno? O que o condiciona?

O fato de haver termo novo que o substitua, ou a palavra ser rejeitada pela razão de o objeto que a representa não ser mais do uso popular: ‘tomar água na cuia’, ‘usar o bilro para fazer uma renda ou roupa’. Não se vê mais alguém ser chamado de ‘vedete’.

Muda a semântica, a palavra desaparece, e vem uma nova. ‘Um naco de rapadura’ não é expressão do linguajar de todos os mortais.

Tentemos, então, dissecar termos emblemáticos do passado que estão no título.

Fastio: a falta de apetite, por algum fato orgânico ou por ter-se empaturrado antes. O fastio parece com o empachamento. Pouca gente, hoje, diria que alguém está ‘enfastiado’, ‘com fastio’, apenas com ‘falta de apetite’. Fastio não cheira à modernidade.

Ladino: o malandro, no sentido burlesco. O enganador, trapaceiro que consegue dissimular, como se seu disfarce não fosse maléfico. Vive de subterfúgios, e engana, engana, demorando a ser descoberto em suas trapaças. Esse é ‘bom’ ladino. Astuto, como o é a raposa velha; espertalhão, finório, manhoso. Quem joga buraco e trapaceia não seria um ladino?

Higidez: não é termo popular; todo médico o conhece bem, já que a higiene, seu maior sinônimo, é importante no dia a dia de cada um para os cuidados com a saúde. Lavar as mãos, escovar, ter asseio em todos os sentidos; não beijar recém-nascidos, não pegar na mão de alguém com ‘defluxo’ ou quando estiver com o vírus causador da gripe, entre eles, o da influenza. Hígido é o ‘limpinho’, o mesmo que higiênico, o cara ‘saudio’.

Escabiose: não diga que uma criança é sarnenta, mas que tem escabiose. Feio seria ofender com termos indevidos, mas não confunda sarnento com sardento. A cultura popular nos ensina que a criança com pintas na face (que seriam benéficas) é sardenta; sarnenta é a que tem sarna, que pega; o mesmo que escabiose. Termo técnico, mas está em desuso no meio cotidiano. Uma bula o cita, o médico o cita (para ser eufemístico e não ofender o cliente), mas o popular o conhece pouco.

Jabá: a carne-seca mais conhecida do Sertão. Carne-de-sol, carne-do-ceará, carne-de-vento, charque. Esses alguns dos sinônimos de jabá, que tem um cheiro forte, mas com muito sabor; um pouco de sal, por isso, deixá-la de molho antes de ser cozida ou frita, mas sempre gostosa, em especial, servida com nacos macios de macaxeira, ou boa mandioca mansa, o aipim. A farofa, de que o sertanejo gosta, feita de jabá, paçoca de amendoim e até uma rapadura ‘serenta’, e outros ingredientes, dá vontade de ‘quero mais’. Carne-do-sertão bem cozida, (ou ‘conzida’), com um feijão mulatinho de primeira, faz o cabra-da-peste suar frio; em seguida, um pedaço de cuscuz com café ‘caboclo’ meio-amargo. Supimpa!

Jabá, ou jabaculê, envolve o engodo de dizer que tal música é um sucesso, pedindo-a, somente para fazê-la mais ‘ouvida’.

Eis o comentário de hoje, que tem uma segunda parte, homenagem à grande cantora baiana Mariene de Castro, ao lado da inesquecível Clara Nunes, duas vozes, de fato, entre outras, merecedoras de elogios na nossa MPB.

Nada tem a ver com a semântica de termos de outrora.

Não sou musicólogo para analisar os ‘acordes canoros’ de cada uma, mas o ouvido me ousaria a dizer alguma coisa.

Chorei de tristeza quando da morte de Clara Nunes, e hoje, sem pejo do que digam os maus pensamentos, choro de alegria ao ouvir Mariene de Castro, um vozeirão, sorriso que atropela sentimentos, a substituta de Clara Nunes sem medo de falar asnice.

Mariene de Castro é baiana inigualável no que canta, diz e escolhe como seu lindo repertório; cantora ‘arretada’ em sentido poético,  intérprete completa.

Tenho a dizer que Mariene não é Clara, nem vice-versa, mas uma supera a outra em certos momentos e em algumas músicas. Quando ouvimos Clara ‘demolindo’ musicalmente O Mar Serenou, ficamos felizes e enternecidos; quando vemos e ouvimos Mariene ‘dissecando’ notas em Deusa dos Orixás, sorriso aberto, olhar profundo, podemos dizer que Mariene supera Clara.

Um pouco de calma. Mariene nunca foi ou será Clara, tão sublime, mas que Mariene ‘assume’ Clara ao cantar é verdade, embora não a possa superar em todos os momentos. Sim, essa é uma opinião; ambas são fenomenais, perfeitas musas da música brasileira, e o sentimento de cada admirador poderia falar alto. Essa é outra certeza.

Clara foi sublime, mas Mariene tem momentos marcantes em que a supera. A banda toda de branco; músicos de instrumentos de corda, e o acordeonista, de um lado; os arranjos; toda uma musicalidade sublime; uma sublimidade invejável; e os músicos percussionistas de outro, bem próximo três senhoras entonando atentas a segunda voz; ou jovens dançarinos fazendo o mesmo papel. Algo estrondoso.

Mariene cantando Um Ser de Luz emociona, atinge o âmago de quem ouve a música, e se ela chora, o espectador também.

Pensemos diferente.

Se Mariene tivesse existido antes de Clara, e hoje Clara fosse sua ‘substituta’, seria dito, por alguns, que Clara seria grandiosa, mas, jamais, seria comparada a Mariene. Por isso, podemos dizer: Clara foi anterior, e hoje Mariene a substitui em muitos aspectos, embora, em certa música, fosse difícil se equiparar a Clara; em outra, porém, a profundidade da voz de Mariene deixa marcas inesquecíveis.

Versos são ditos com maestria, cuja metáfora assombra: “Varri a casa com vassoura fina”, “Viva a alegria de viver”.

Quando canta Cirandas, com tantas crianças felizes a seu lado, a musicalidade extrapola, as metáforas se tornam poesia, e a música, além de deleite, mensagem de paz.

João Carlos de Oliveira

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