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“A vítima era diabético e hipertenso” (sic), como anunciou uma manchete sobre pessoa com a doença do século

Vítima é vocábulo masculino ou feminino?

Vítima é feminino não somente porque termina em -a, mais pela sua etimologia. Termo vindo do Latim victima, tem várias conotações: ‘criatura viva oferecida em sacrifício a uma divindade; pessoa assassinada, torturada, ferida ou ofendida por outra; pessoa que sofre acidente, desastre, desgraça ou calamidade; (por extensão), o que sofre dano ou prejuízo’.

Essa abrangência, dando-a como palavra polissêmica, consta do Larousse Escolar.

Onde está ‘o que‘ (sofre dano ou prejuízo), para dirimir dúvida, subentende-se quem, aquele (aquela).

Seria necessário explicar que não é comum usar ‘o vítima‘, vocábulo masculino?

Nosso acervo linguístico já ‘sabe’ que vítima (como pessoa, divindade, criatura etc.) é palavra feminina, usada como sobrecomum, que vale para o masculino e o feminino. A vítima pode ser ele ou ela; pessoa, o homem ou a mulher; divindade, um deus ou uma deusa; criatura, indivíduo masculino ou feminino. Disso temos conhecimento, e a explicação didática pode ajudar a entender o motivo da análise sobre essa palavra tão veiculada nesses momentos críticos.

Ainda, para ficar clara a escolha, o porquê do título.

O comentário toma os termos ‘diabético’ e ‘hipertenso’ como adjetivos, não como substantivos, que, também, podem ser.

Ademais, para contrapor, vocábulos terminados em -ma, por assim dizer, são masculinos: o cinema, o diadema, o dilema, o eczema, o edema, o esquema, o estratagema, o fonema, o telefonema etc., momento ainda em que se podem compará-las com outras, femininas: a algema, a gema, a jurema, a urupema (a popular peneira, chamada urupemba, com outras variantes gráficas).

Isso basta? Fica a depender de cada caso ou pessoa. Há quem diga ‘a emblema’, mas o dicionário diz ‘o emblema’, razão por que se reafirma ‘vítima’ como palavra feminina.

A vítima, falecida no acidente, era um homem.

O redator entendeu diabético, apenas, como substantivo masculino?

E o fez com a certeza do gênero?

Consciente ou não, o motivo se dá pela concordância ideológica e não pelo que está escrito. Tem-se silepse de gênero.

Duas pessoas conversando, frente a frente, embora vossa senhoria seja forma de tratamento no feminino, pode-se dizer Vossa Senhoria é bondoso, porque o ouvinte é um cidadão.

Há liberdade de expressão ou licença poética, que constitui figura de linguagem.

Se usamos ‘Vossa Senhoria é bondosa’, que está correto, não fica clara a referência ao homem ou à mulher. O destaque é dado à concordância nominal. Para outrem, poderia haver questionamento. Nesse caso, não há figura de linguagem.

Se dizemos ‘Vossa Senhoria é pessoa bondosa’, mais uma vez, vale para o cidadão e a cidadã, sem haver silepse de gênero, e não se supõe o sexo da pessoa a quem a mensagem se refere.

Por isso, a mudança na manchete é bem-vinda ou necessária em alguns momentos pelo menos, além de ser uma estratégia de marketing para os dias de hoje.

Um deputado se sente honrado ao ser tratado como Vossa Senhoria. Usando-se Vossa Senhoria é educado, diretamente, implica elogio forte, e o ente masculino se exalta. Destaca-se a silepse de gênero.

Uma deputada se sente honrada ao ser tratada ‘Vossa Senhoria é educada’. Não se destaca a figura de linguagem; sobressai-se tão-somente o elogio.

Certamente!

Ficaria aborrecido o deputado tratado com a expressão ‘Vossa Senhoria é bondosa‘? Não se sabe; frase correta, deve ser entendida pela sua concordância nominal; mas, talvez, pense um pouco, mesmo que não reaja. Ficaria sob os olhares da simplicidade. Quem visse o enunciado por olhares outros é que teria que se explicar. Frase pejorativa é que não falta, tanto se fala, na modernidade, na questão do gênero, motivo de tanta polêmica, item que nada tem a ver com este comentário.

Variando, aborrece muito ‘a vítima fatal’, que tanto usam; ela teria danos de ‘morte’ duas vezes: morreu por si mesma e pelo ato de outrem. Já basta o famoso “A nível de Brasil”, tão usado como se bebesse água doce da bica, fresquinha e límpida, nascida das próprias entranhas da terra, filtrada pela Natureza no pé do morro, lá nos grotões de Cachoeira Grande, distrito de Jacobina, BA. A água jorra nativa, em pouca quantidade, mas o suficiente para matar a sede do camponês e de alguns cabritos, bebida na hora certa, e o manancial cercado para evitar pisoteio, para que não desapareça ao se tornar local assoreado ou endurecido como barro duro de adobe curado.

Um circunlóquio sem razão?, mas já estou no campo de novo.

A língua é uma seara, múltipla e fértil, por isso, os frutos são muitos, a colheita é farta, e vale a pena darmos uma olhada no santuário que nos rodeia. O Raso da Catarina, na Bahia, é beleza profunda, e lá o sossego saboreia a vida.

Pode-se ouvir Ele é gente certo, silepse de gênero, também. ‘Gente certa‘ não evidencia a pessoa; somente, a concordância no feminino. A imaginação ‘certo’, por ser ele, realça seu comportamento correto.

A silepse é a alteração da concordância gramatical das palavras, em gênero (fácil de entender?), número e pessoa, momento em que passam a concordar com a ideia que expressam.

Silepse de gênero: A vítima é hipertenso…, em que o adjetivo (no masculino) passa a concordar com a ideia de que se trata de um homem.

Silepse de número: “Coisa engraçada é gente velha. Como comem!” (Machado de Assis). ‘Comem’, no plural, representa a ideia do coletivo: gente indica várias pessoas.

Não é ideal que se diga Essa gente são velhos! Nem A gente vamos. Tampouco, o povo são estúpido. (O adjetivo no singular, após o plural, é mais atordoante.) Pode ‘Morreram gente?’, pergunta um.

Silepse de pessoa: ‘Os brasileiros somos vaidosos‘, frase popular por influência de outras que circulam no folclore, no cancioneiro popular, no charadismo etc. Os brasileiros ‘são’ vaidosos, concordância normal, por se tratar da terceira pessoa do plural; entretanto, para realçar, foi usado ‘somos’, mudando para a primeira pessoa do plural, porque quem redige se inclui entre os brasileiros que têm essa característica.

Em Nós, os brasileiros, somos vaidosos deixa de haver silepse, mas frase do lugar-comum com aposto. Outros usam algo similar: Nós, os convidados, sentimo-nos honrados com a deferência, frase que, posteriormente, ganha nomes de destaque (advogados, médicos, empresários etc.), com grande efeito de celebridade, emblemático para tipificar classes sociais.

Para fechar, a frase ‘O Brasil como um todo’, ou sua similar, não convence nem diz realmente o quê. A sociedade como um todo?

O que é esse todo? ‘Toda a sociedade’, ‘Todo o Brasil’ não seria suficiente?

O Brasil e a Sociedade, por si sós, substantivos de uso amplo, são suficientes e eficientes para comprovar o coletivo que representam.

O Brasil como um todo ficar melhor que Todo o Brasil?

A frase O Brasil inteiro sabe do que se fala seria incompleta?

Alguém usou “O Brasil, como um todo, é uma grande Nação”, e virou bordão. Agora, é chique usá-lo, jogando-o no espaço sideral a qualquer preço!

“O Brasil é uma grande Nação” não seria adequada? Toda a Nação brasileira… não seria uma boa frase?

(A imitação é coisa chata.)

 

João Carlos de Oliveira

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