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Amo ‘ele’, amo-o, amo a ele, amamos a Deus…

Amar é polissêmico, mesmo que seus significados não demonstrem esse valor tão importante no uso da linguagem, qualquer o nível, do popular ao culto e ao erudito, a tramitar no cotidiano, da literatura de cordel à fala jornalística, dos dizeres poéticos à tese de doutorado.

O menor sentido do verbo, se assim alguém poderia dizer, é o liame metafórico: amar é sentir o calor de um corpo, é viver a alegria de um sorriso, é saborear o cheiro da terra, é degustar o café quentinho com um cuscuz nordestino arretado.

Usar os sentidos do verbo amar, expostos no dicionário, ainda assim, serão menos que os vieses do dia a dia. Observe alguém a falar de algo praticado com denodo e entusiasmo, até o costume de catar minhocas para a pescaria de lambaris no riacho mais próximo da casa na fazenda, e chega um que não teria esse hábito, admirado, comenta com o ‘pescador’ a atitude de estar ali acocorado catando os ‘anelídeos oligoquetas’ para a tarefa imediata de pescar, silencioso à beira da água, para não fazer barulho.

O anfitrião diz ao chegante: “Eu amo fazer isso’.

Isto é, ama cavar minhoca e pescar com um anzol rústico numa varinha torta, nem que não fisgue um só lambari, e ainda volta ao mesmo lugar em tempo muito próximo.

O que é ‘amar’ nesse aspecto?

Você ama fazer aquilo de que gosta?

Amar caminhar, andar de bicicleta. Ou ama falar mal daquele que nem conhece. Isso é amar?

Dona Maria, costureira de mão-cheia, ama fazer tricô, usar os bilros para fazer uma rede de dormir sossegado, debaixo do cajueiro na porta da casa.

‘Amar’ no primeiro dicionário, escolar, um léxico mediano: v.t. (Latim amare) Ter amor, afeição, ternura, dedicação, devoção; querer bem. Estimar, gostar (de), apreciar. * v.i. estar apaixonado: Vê-se que está amando. V. pr. Praticar o ato sexual. Amaram-se por toda a noite.

Obs.: para amar se tornar verbo pronominal é simples: acrescenta-se o pronome reflexivo oblíquo -se, amar-se. Eu me amo, tu te amas, ele se ama, nós nos amamos, vós vos amais, eles se amam (com o pronome antes da forma verbal, em próclise). Se quiser: amo-me, amas-te, ama-se, amamo-nos, amais-vos, amam-se (com o pronome após a forma verbal, em ênclise).

Voltando à definição do dicionário, podemos analisar que ‘se você tem amor (não importa a que, a quem), você ama (ama a vida, ama o ar puro); se você tem afeição (se é afeito a algo), você ama (gosta de fazer miniaturas de automóveis); se você é terno a algo (cuidar de uma planta, de um animalzinho), você ama; se você se dedica a alguma coisa (dedicado a fazer o bem, a limpar a boca de lobo de sua rua, em que o passante joga o copo plástico ou o papel de biscoito), você ama; se você é devotado a praticar ajuda a pessoas, você ama (levar um feixe de lenha para a senhora idosa de poucos recursos financeiros para cozinhar seu feijãozinho catador).

Há, portanto, muitas formas de amar, e talvez nem todos se deem conta desses atos. Amar e amar, apreciar e amar, ou vice-versa. Amar fazer um cafezinho orgânico depois de pilar os grãos, depois de socar os grãos no pilão de aroeira, forte como uma rocha.

Por isso, além de metafórico, é um verbo polissêmico (que tem muitos significados).

O segundo dicionário, antigo, editado por volta de 1950, no Porto, em Portugal, e vendido no Brasil, diz isto: v. t. (Lat. amare). Sentir amor, ternura, afeição profunda por alguém: amar a esposa, os filhos. Prezar, gostar muito de: amar as honras, o poder. Escolher, preferir: amar a solidão (que nos faz bem à alma (acréscimo nosso). V. i. Ter amores: muito padece quem ama (O amar é difícil (parecer nosso). Antônimo: odiar, detestar.

Detesto quem me grita, no lugar de me dizer uma palavra macia, suave, pedindo que eu vá à Lua defender as borboletas, que o pesticida jogado nos tomates mata, que mata as abelhas, que podem desaparecer.

Como você ama? Qual é sua forma de amar? Ou suas formas de amar ao próximo? Pelo menos, se não o ajuda, não o atrapalha nem o prejudica, não entra numa esquina com o veículo em alta velocidade (sem o devido sinal), colocando em risco a vida de um transeunte na frente (uma criança, um idoso). Se a cidade tem movimento, tem grandeza, isso se dá por causa do trabalho, da função de cada um, e por isso você tem a sua, tem suas oportunidades de trabalho. Se o mototaxista anda em velocidade incompatível com o local, com alto risco de acidente, o que muito acontece, deve pensar que, se a cidade tem muita gente, daí a sua chance de trabalho; se não há ninguém na rua, para que ele transite livremente, com a ‘velocidade dele’, ele não teria o trabalho de transportar pessoas. Se assim o quer, poderia ir transitar no deserto do Saara, cujas dunas são livres e abertas. (Podemos argumentar assim?)

Então, o verbo amar é rico, variado. Use-o à vontade, da maneira mais bela que lhe possa parecer, sem se incomodar com o olhar de quem o rodeia.

Amo ele, ama ela, amo a vida, amo o trabalho, amo o que faço, amo-o, amo-a.

Se a (nossa) Gramática Normativa diz que não se deve usar o pronome reto como sujeito (vejo ‘ele’, amei ‘ela’ como amo a mim mesmo), e recomenda apenas ‘amo-a’, poderia dizer que quem não usa o pronome oblíquo (ama-a), pode optar por ‘Amo a ela’, assim como se diz ‘Amamos a Deus’, que não é o amor carnal, mas o amor espiritual, sagrado.

Amo minha mulher (pode ser amor físico), e assim se mantém em Amo a ela, amo a meus filhos.

Se a frase ‘O pai ama o filho’ é dúbia (um ama ao outro), e tanto o termo pai, como filho, pode ser sujeito ou objeto direto, pode-se evitar a ambiguidade com a construção frasal O pai ama ao filho (objeto direto preposicionado), ou passar a frase para a voz passiva analítica: O pai é amado pelo filho (o filho ama ao pai), o filho é amado pelo pai (o pai ama ao filho).

Admiro ‘ele’ (frase popular, informal, que não acata a regra), no lugar de ‘Admiro-o’, mas temos a opção ‘Admiro a ele’, e assim ‘Convido a ele’, se não gosta de usar ‘Convido-o’, ou se tem receio de usar no meio social ‘Convido ele’.

Tasque lá: Convido a ele para o nosso jantar. Vimos convidar a você (a ela) para o nosso jantar.

A frase do texto jornalístico “Bandidos sequestraram as vítimas e obrigaram ‘elas’ a fazerem transferências” (sic) poderia ser Bandidos sequestraram as vítimas e obrigaram a elas fazer transferências (bancárias).

‘Obrigaram-nas’ é a forma gramatical. Obrigaram ‘elas’, popular. Obrigaram a elas, uma saída adequada.

Se o artigo serviu, crie as suas formas do falar alternativo.

Amo ao mundo como amo a meus pais.

Abraços.

 

João Carlos de Oliveira

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