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Os ‘oceanos’ da Língua Portuguesa

Não seria didático alegar que a Língua Portuguesa é difícil. O aprendiz precisa ser encorajado a entendê-la, acostumando-se com suas nuanças. Mas a motivação maior deve ser espontânea, mesmo que um empurrão ajude.

A aprendizagem não deve vir intumescida de desculpas. Muitos lares, até escritórios, não têm gramática nem dicionário, além de outras obras. Como se aprende se o idioma é complexo, como outros, e não existem fontes de consulta? É costumeiro se dizer que não nascemos sabendo, por isso, a pesquisa é o ‘tônico capilar’ para rejuvenescer o couro cabeludo, que deve reservar saberes. Fora desse contexto, o uso do idioma atendendo à norma culta se torna quase impossível. Aprender requer paciência. O idioma sofre com os lapsos linguísticos visíveis e audíveis, ‘construídos’ por quem possui instrução escolar.

Jornais e periódicos divulgaram que o ex-presidente Lula recebeu título de doutor honoris causa, não acessível a qualquer plebeu.

“A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, concede ao maior presidente da República Federativa do Brasil, senhor Luiz Inácio Lula da Silva, o torneiro mecânico, o título de doutor honoris causa” (sic).

O texto é pleno de elogios, consciente dos destaques ‘o maior presidente’ e ‘o torneiro mecânico’, motivos para enfatizar sua performance populista.

Até esse momento, nada enfeia a mensagem, mas a primeira vírgula! São quatro. A inicial caracteriza o hábito secular da redação pecaminosa do uso de vírgula entre o sujeito e o verbo, truncando ‘a expressão linguística’. Ficamos hipnotizados: se uma instituição de nível superior comete esse deslize, o que dizer de um aprendiz que escreve “O povo, saíram em defeza de seus direitos”, excerto de redação escolar. O uso de Z no lugar de S não nos é novidade: tivemos a pseudo-ortografia, que adotava ‘dezenho’, ‘perigozo’, ‘gaz’ e outros símbolos de nossa ojeriza à Gramática, incluída a Histórica. Não vamos nos ater a tanto, porque, de fato, S e Z se confundem com abundância.

As duas vírgulas seguintes separam o (primeiro) aposto; isso é certo. A segunda e a terceira, que se junta à quarta, têm a mesma finalidade: separar o segundo aposto. Ainda bem. Essas estão corretas.

O noticiário alegou que o Diploma continha a grafia ‘dicente’, referente a alunos (corpo discente), vocábulo confundido com ‘docente’ (corpo docente). O uso de SC, de origem latina, também é motivo de grafias ruins pelo Brasil inteiro: em todos esses cantões, estão os ‘oceanos’ com suas grandezas pelágicas, com suas regiões abissais, e nelas ficamos à deriva tendentes a morrer afogados por não sabermos ‘nadar’ num idioma de águas profundas.

Imprescindível é lermos por sermos suscetíveis a erros. A vida onisciente seria quase inacessível, mas pode nascer e crescer, evoluindo, por ser mutante; se jovem e afoita, vive às turras com as marés pensantes, que sobem e descem a cada seis horas.

Poucos admitem que descente, a descer, difere de decente, honrado. Preferem o radical ‘kilo’ e desprezam a forma aportuguesada ‘quilo’, redução de quilograma, que pouco usam; adoram ‘disk’, ‘destak’; ‘disque’ e ‘destaque’ ficam obsoletos por não terem charme moderno. Surge, na dúvida, ‘(des)nescessário’.

Por essas razões, não temos que contestar o uso popular de ‘bassoura, assobiar, relampejar’ (variantes gráficas), mesmo que fiquemos admirados com quem gosta de ‘cousa, bile, percentagem’. O mar, com poucas angras para nos ancorarmos, torna-se oceano. A água pluvial pode criar igarapés, que viram rios caudalosos em que não sobrevivemos.

Segundo um hebdomadário, a ‘ocorrência’ gráfico-linguística teve justificativa: SC pode ser C se o documento não é oficial. O oficial tem uma grafia; o não-oficial, outra. Isso pode?

Perdoemos, sim, o erro da primeira vírgula (Universidade concede…), porque textos de prefeituras, e muitas, além de artigos policiais, usam essa mesma mania virgulosa: ‘Prefeitura Municipal de Pé-Quente, comunica ao povo em geral, que não haverá expediente no dia 30 de fevereiro desse ano’. ‘O mototaxista Dinossauro, faleceu em um grave acidente entre dois veículos, na estrada que dá acesso a Novo Mundo nesse Município’. As vírgulas são desnecessárias.

A virgulose é doença redacional. E ‘deste, desse, nesse, neste’ se confundem.

Nesse ínterim, devemos ter respeito com o vendedor ambulante que anuncia em seu carrinho: “Vende-se salgados”. Qual a ‘profundidade’ do oceano? Na visão dele, não se entende que um produto (pastel, coxinha) é vendido; ele entende que alguém está vendendo um produto; não se trata, pois, de estar a frase na voz passiva sintética; para ele, ela indica, claramente, que se trata da indeterminação do sujeito, porque é assim que está em outros avisos que vendem carros, casas, lajotas, tijolos etc. Ninguém sabe o nome do vendedor, mas se sabe que alguém vende (alguma coisa). Isso, no popular, é sujeito indeterminado; não sujeito passivo sintético, como quer a norma culta. Vendem-se salgados (não coaduna com o popular).

Um texto de marketing diz sob entonação de destaque: “Você tem desculpas para não sair de (…) novinho? Então, entra aqui e aproveita“. Se há erro em ‘dicente’, em ‘vende-se salgados’, em ‘respeito à Deus’, a mensagem traz erro grave na mistura de pessoas verbais no mesmo enunciado, em que a uniformidade de tratamento é descumprida: ‘Se você tem desculpas (…), então, entre aqui e aproveite‘. O tratamento ‘tu’ nesse contexto não é agradável, mas que usemos o ‘você’ adequadamente.

‘Ele não pode vim‘ é homicida de ‘Ele não pode vir‘. Na locução verbal, quem manda é o auxiliar, não o principal

A borrasca nevoenta em mar alto açoita as ideias, oscila entre o culto e o popular. A gramática dá lugar a uma bebida importada. Consulta pode dar indício de fraqueza; empreendedor moderno não deve demonstrá-la. Vamos no sopapo, porque o outro também não sabe. ‘O respeito a Deus’. Nome próprio masculino, onipresente, onipotente e onisciente, antes de Deus não há crase, que O ofende.

“Dize-me com quem andas e eu te direi se vou contigo” (Barão de Itararé).

 

João Carlos de Oliveira

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