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A dinâmica do falante cujo idioma, para ele, é ágrafo

A linguagem se bifurca entre a falada e a escrita. Diz a História, pela própria lógica, que surgiu primeiro a fala. Interessante pensar quem o primeiro humanoide a aprender a falar e, no circunlóquio, ensinar os parceiros a seguir seu caminho. Milênios depois nasce o registro das ‘onomatopeias’ e dos símbolos fônicos, engenharia que o ‘computador’ da época não registrou.

Hoje, parece tudo fácil, e as hipóteses predominam para a Historiografia comprovar, nos milhares de anos passados, os intervalos entre a fala e a escrita dos humanos no Planeta Terra.

No Brasil, não se vê com bons olhos o indivíduo que apenas fala o Português (não-alfabetizado por não ter ido à escola). Chamam-no ‘analfabeto’, mas é ‘poliglota’ dos falares regionais. O compêndio clássico diz que esse ser é apedeuta, pessoa sem instrução. Pode-se discordar, pelo menos em parte, dessa teoria: há falantes que não foram à escola e dominam bem a linguagem, mesmo que usem ‘cibola’. Há culto que usa ‘catiguria’. Até ‘dão aulas’ de como falar em público, com uma linguagem leve, solta, sem maldade, sem aquelas interrupções enfadonhas: ‘É… tipo assim. Acho que… (né?). Entendeu?’

Há pessoa simples que, ao se expressar, denota elevado nível cultural, cuja linguagem oral tem feição curiosa: rica, múltipla, dinâmica e penetrante. Cara a cara, o falante pode-nos encantar. Linguagem saudável, bonita, ‘gostosa’ se ser ouvida.

Por outro lado, existe uma linguagem enfadonha, evasiva, imbuída de círculos viciosos. Um cidadão, envolvido em brigas conjugais, na tentativa de se expressar bonito, diz “Quero saber o álibi que minha ex-esposa usou para falar mal de mim e pedir o divórcio, se sou um homem muito bom”.

A linguagem falada é polissêmica: “Essa mulher costura para fora”, para dizer que a vizinha ‘pula a cerca’. Se alguém não conhece o jargão regional, poderia perguntar que tipo de ‘calça’ ou ‘camisa’ ela costura.

O analfabeto é direto no falar: “Compadre, nós somos muito machos. Se matamos a cobra, mostramos o pau”. Primeiro, mostrar a cobra morta, e depois o instrumento usado para tirar-lhe a vida.

A fala do jovem costuma dar rodeio, perguntar o desnecessário. Se já está em contato com alguém, por que lhe falar “Deixe-me te falar – você põe recarga em celular?” Sua linguagem é dicotômica: quando dá sinal que vai, vem; quando vem, quer ir. É preciso ser maroto para entender a dubiedade da fala de muitos jovens. Usam à vontade: “Oh! véi, sabe! Quero morar em Paris. O Brasil não me serve mais, tem maus exemplos. Quero viver num país maneiro”.

Observando a fala, são ricas as interjeições; a mineira mais famosa, ‘Uai!’, tem utilidade tão variável quanto o saber; a baiana-nordestina ‘Oh! xente!’ é um mundo napoleônico; as gaúchas ‘Trilegal!’ e ‘Tchê’ convidam-nos a usar bombachas.

Pode-nos espantar a fala de um repórter que diz que um grupo de pessoas foi ‘evacuado’ por ‘conta’ de um possível terremoto.

‘Evacuar’ é verbo mais conhecido como ‘expelir fezes’.

O acidente foi ‘por conta do trânsito lento’. No dizer desse, o acidente é que ‘motivou’ o caos no vaivém de veículos, e pode ter havido ‘vítima fatal’, que não suicidou, mas se ‘matou’.

Um só sinistro fez muita coisa!

“Fomos no clube. O sistema saiu fora do ar. Na realidade, estamos aqui de muito tempo”.

Interpreta-se que ‘na realidade’ insinua que a outra parte da fala não era ‘verdadeira’.

Já a boa escrita, como em Vida Secas, pode escalar o Kilimanjaro, os Alpes, os Pirineus, chegar ao Himalaia e galgar seu pico mais alto, o Everest.

A boa linguagem é espontânea e simples. Falar em público, realmente, não é fácil. Para o iniciante, todo cuidado é pouco, e devemos compreendê-lo com a visão antecipada de perdoá-lo pelos enganos.

Poderia anotar uma frase anedótica, sorrir ao cumprimentar os diletos ouvintes, contar uma piada e começar ‘seu grande discurso’. Na dúvida, faria pausa para não ficar ‘boquiaberto’: “É… sabe… Eu acho… é…”, e sair, apenas, um cartucho já queimado.

Apresentador(a) de programa televisivo tem o hábito de falar com repetecos costumeiros e sorrisos artificiais, e repete, repete, até o nada dizer.

O feirante é mais cuidadoso: fala pouco, sucintamente, mas é agradável, simples e meigo. Seus termos ricos dizem a verdade: “O pacote de cebola custa 2 ‘real‘. Faço 3 por cinco”. E vai dando seu recado. Não mente, não inventa, não parafraseia para enfeitar o que não sabe dizer.

“Ele foi o único que não conseguiu ser resgatado”, trecho de uma reportagem sobre náufragos recentes no Brasil. O náufrago ‘preferiu morrer’? Essa escrita, usada por quem conhece o idioma, não é a mesma coisa que “Ele foi o único que não se conseguiu resgatar”.

Eis dois mundos, o da coloquialidade e o da escrita. O falar cotidiano é versátil.

Pausa: há dúvida ao se escrever expressão com ‘de’ seguida de palavra iniciada por vogal. Essa preposição vem com dê maiúsculo (D), e o nome a seguir com letra inicial minúscula: Pau D’arco. ‘Pau-d’arco’ (ipê) e ‘Pau-d’Arco’ (lugarejo, logradouro), maneiras corretas de ser grafada a expressão. A Bahia tem a cidade de Dias d’Ávila. Há quem use ‘Dias D’ávila’. A preposição é com letra minúscula; o nome próprio com maiúscula (primeira grafia acima). Outros exemplos (com grafia correta): Joana d’Arc, caixa d’água, Caixa d’Água, Espigão d’Oeste (cidade em RO) ou Espigão do Oeste. A grafia Espigão D’oeste não é aconselhável. Espigão do Oeste, cidade bonita, nasceu da coragem dos irmãos paulistas José Cândido, Nilo Tranquilo e Romeu Melhorança. Bicampeã Nacional da Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas e da Olimpíada Brasileira de Língua Portuguesa, é conhecida como a cidade dos pomeranos. Parabéns aos espigoenses.

 

João Carlos de Oliveira

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