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‘Feche a barguia, menino!’ O que é isso, companheiro?

Quanto à variedade dos regionalismos, nosso idioma é fantástico. A qualquer momento, descobrimos nova palavra. Em cada região, os termos populares fluem! Todo cidadão comum tem vocabulário peculiar, herdado de seus ancestrais. Eis as razões por que não podemos condenar essa linguagem especial e específica. Não vinga condenarmos interjeições nem pronúncias inusitadas; convém respeitarmos essa riqueza imaterial, cultura de um país enorme com suas diversidades.

Você conhece a palavra ‘barguia’? Já a teria usado em algum momento e, talvez, nem notado seu charme? Conhece alguém que a usa? Já questionou com um ribeirinho que não é ‘barguia’ (não na linguagem culta; na popular, tem seu lastro), mas braguilha?

Qual sua origem?

O dicionário não define de maneira clara o étimo de ‘braguilha’; diz que é um derivado (aglutinação?) formado de braga+ilha=braguilha. Variantes gráficas: breguilha e barguilha.

Este comentarista, de origem simples nordestina, lembra que a pronúncia barguilha, ainda usada no interior, é justamente a que gera sua forma mais popular: barguia, que não se encontra nos compêndios. Respeitado o regionalismo, sobrevive na fala de muitos.

Nos campos abertos da caatinga, milho é ‘mio’; filho, ‘fio’; novilho, ‘novio’, e, assim, braguilha vira braguia, e barguilha, barguia.

Braga vem do Latim braca. Se de um termo se chega a outro, assim é formado o vocábulo bragas, calças largas e curtas. Então, o diminutivo de bragas, seguindo toda a nuança da Gramática, forma braguilhas. Do plural, passamos ao singular: braguilha.

Com a evolução da semântica, braguilhas, no lugar de ser ‘calças curtas’, modelo usado pelo camponês da Caboronga, comunidade perto do Distrito de Cachoeira Grande, em Jacobina, BA, por falta de recursos econômicos (não podia comprar um metro e meio de brim para fazer uma calça comprida, comprava um metro e fazia uma calça curta), surgiu braguilha: ‘abertura na parte dianteira das calças, calções e cuecas’; em período anterior, fechada com botões.

Ops! Cueca com braguilha, professor? Você está muito fora de moda!

Sim, tivemos, e já usei, a cueca ‘samba-canção’, de algodão fino, branco, usada por homem de certo padrão. Dormia-se com uma peça dessa, novinha em folha, muitas vezes, engomada. Ficava lindo! (Resta saber quem ainda a usa.)

Hoje, cueca não costuma ter braguilha. Bermuda ou calça é que contém um zíper, ou outro material, para o fechamento. Com botão, seria coisa rara.

O mundo tem suas voltas, a cultura tem suas sinuosidades, as palavras têm novas dimensões, e vamos trilhando novos caminhos no falar.

Então, de braguilha passamos a barguilha, e de braguia a barguia. São simples assim! Breguilha é novo modo de falar, talvez, menos usado. Se existe terraplanagem, que passa a terraplenagem, torna-se aceitável que não contestemos a metamorfósica breguilha no lugar de braguilha. Nem braguia ou barguia.

Resta-nos que cada cidadão diga qual é o seu termo preferido, que o resultado é o mesmo: “Feche a barguilha, meu filho, pois você está mostrando os documentos!”

Entendamos tudo, e deixemos o linguajar regional fluir. Cada um na sua fala coloquial mais curiosa. Desnecessário falar do baianês, do mineirês, do carioquês, do gauchês. Deixemos cada um ter sua própria vida. O que nos pode causar espanto é o internetês, preguiçoso como alguém que não gosta de pensar, ou lento como animal cansado ao subir o aclive cheio de pedregulhos. Basta isso.

E agora?

  1. Febril, o menino está com o pé quente. Sortuda, a moça da casa lotérica é chamada pé-quente.
  2. O cidadão deu depoimento ‘contra a si mesmo’. Basta ‘contra si mesmo’. Não cabem, a um só tempo, as preposições ‘contra’ e ‘a’.
  3. Feita a conta, ’30 Reais dividido por dois dá 15′. Vamos rever a Gramática: 30 Reais divididos por dois dão 15. Aquela é frase popular; esta obedece ao trâmite da norma culta.
  4. ‘Pejotização’ surge como neologismo. O CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) vem-se popularizando: a empresa vende o produto e tem a obrigação de fornecer nota fiscal. Daí, vivermos a pejotização, assim é que se pode entender dos comentários de economistas sobre a saúde econômico-financeira de um povo.
  5. O termo loja, no sentido de comércio, é nascido do Francês ‘loge’. Nossa grafia é aportuguesada, daí lojista, alojar etc. Há uma versão que nos ensina que ‘loja’, no âmbito da Maçonaria, vem de ‘lodge’, de origem inglesa. Vem a pergunta: podemos usar ‘logista’? Seria influência do Galicismo? Não podemos. Se houve isso com uma ortografia ‘trôpega’, quando se chegou a escrever chauffeur ou baton, hoje a Ortografia, parte da Gramática que nos ensina a forma correta de se escreverem vocábulos, é clara: lojista. Não faz sentido, então, que em uma cidade exista “Câmara de Diretores Logistas” ou se use “Prêmio do Mérito Logista“. Isso é pseudo-ortografia.
  6. O texto grafa ‘caretisse’, insinuando que fulano é careta (tacanho, atrasado). Usando-se o mesmo sufixo de burrice, mesmice, a grafia é caretice. Para quem é ‘broxa’, aquele cuja libido ‘faleceu’, deve-se usar broxice. Brochisse nem brochice existem. A grafia correta segue o critério da derivação sufixal tradicional: birutice, bobice, criancice, doidice, crendice, donzelice, janotice, macaquice, parvoíce, patetice, velhice etc. E outras. A terminação ‘isse’ é desinência verbal (pretérito perfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo, imperativo): disse, saísse, visse, fluísse, sorrisse, aterrisse, entre outros.
  7.  A alguns anos ou alguns anos? Ambas as formas estão corretas, a depender do contexto frasal e da semântica. Se algo aconteceria no futuro, seria daqui ‘a alguns anos’. Se algo já aconteceu, o fato se deu ‘há alguns anos’ (há vinte anos).
  8. Já que na coloquialidade usamos você, se vamos convidar alguém a comparecer a um local (para uma promoção), em frase apelativa, devemos usar ‘Corra lá‘, e não ‘Corre lá’ (esta cabe para a pessoa tu).
  9. Estão alterando a classificação de gênero de alguns substantivos. Criança é sobrecomum (menino, menina), assim como ídolo. O cantor é um ídolo (simples e correto); mas dizer ‘A cantora é uma ídola’ caracteriza extrapolação gramatical ultraviolenta, verdadeira cacetada nas regras da Gramática Normativa, assim como chamar o jovem de ‘meu muso’. Embora as inovações possam ser louváveis, algumas carecerão de mais tempo. Seria lógico ‘Vovó carrasca‘, ‘Maria gênia’, ‘Pedro crianço’? Crianço é larva de abelhas.
  10. Se fica feio o uso de ‘impecilho’, no lugar de ‘empecilho’, da linguagem culta, por que o repórter usa ‘enxorrada’ no lugar de ‘enxurrada’? Não troque cabeçalho por cabecário. Louvemos, então, a pronúncia caipira ‘melencia’ no lugar de melancia.
  11. “Filmes que (…) deve assistir”, diz a manchete. A regência verbal de ‘assistir’, nessa frase, prejudica a semântica. Está correta se alguém der ‘assistência aos filmes’: cuidar deles. Como a pretensão é a de vê-los, a regência é transitiva indireta: ‘filmes a que (…) deve assistir’; ‘filmes aos quais (…) deve assistir’.

João Carlos de Oliveira

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