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Ter, quanto ao uso popular, é verbo vicário?

Vicária é a palavra que substitui outra (para não ser repetida).

Aprendi, ainda estudante de Letras, com o saudoso e competente professor José Maria, que ‘fazer’ pode ser um verbo vicário.

“João, você vai consertar a cadeira hoje?”, pergunta alguém ao amigo, que lhe responde: “Não, mas vou fazê-lo depois”.

Nota-se, claramente, que o verbo consertar não foi usado na resposta, que poderia ser “Não, mas vou consertá-la depois”. Para não ser usado o mesmo verbo da pergunta na resposta, optou-se por um substituto (fazer). Claro, ainda, que se trata de uma linguagem culta, mas tem sua eficácia, e, por ser correta, poderia ser mais usada. Como não se trata de linguagem cotidianamente conhecida, o uso de verbo vicário não é comum.

Talvez, não seja simpático usar o verbo fazer dessa forma no meio popular; entretanto, na escrita ou na fala, estritamente, voltada para um momento culto, cabe.

Nesse diapasão, o verbo ‘ter’ pode aparecer como vicário na fala coloquial. Seria simples imaginar que ‘ter’, como ‘ser’, é pau para toda obra. Ter é verbo rico, polissêmico, chegando a ter mais de 50 significados. Basta um exemplo para ilustrar essa variedade semântica: “Tenho pra mim, meu amigo, que você é grandessíssimo ladrão! Seu safado!”, diria o opositor, mas o ofendido, que não se ofendeu nada, fica calado. Ter, nesse aspecto, é considerar, admitir, julgar, supor, concordar, salvo melhor juízo de um analista de altíssima envergadura.

‘Tem’ gente na porta: uma frase comum para se indicar a chegada de alguém.

‘Tem’ muita goiaba neste pé: quando estamos num sítio e vemos as frutas à nossa frente, admirados.

Assim, o verbo ‘ser’ poderia ser considerado vicário em outro momento popular: “Você mora nesta casa?”, e o caboclo responde: “É”, simplesmente. (Essa a menor forma verbal da Língua Portuguesa.) “Seu pai vai viajar hoje, menino?”, e o guri tasca lá friamente: “É”.

Observadas as perguntas anteriores, e usados os verbos da inicial na resposta, o modus de responder seria diferente: Há gente na porta. Existe gente (chamando) na porta. Existe muita goiaba neste pé. Há muita goiaba nesta goiabeira. A goiabeira tem muita goiaba. Sim, eu moro nesta casa. Sim, meu pai vai viajar hoje (para Paris, a fim de assistir a uma partida de futebol do time de Neymar, o maior craque do momento).

Esses três verbos se encontram no nosso dia a dia nos mais diversos modos de nos expressarmos sem qualquer receio de uso: tem flores, existem flores, há flores, apenas lembrando que haver não é popular.

‘Tem’, forma flexionada de ter, na terceira pessoa do singular, no presente do indicativo, predomina no linguajar cotidiano, valendo para o singular e o plural: ‘tem’ chovido bastante, tem acontecido muitos acidentes nas estradas.

O senhor tem banana? pergunta-se ao bodegueiro. Isto é, o senhor vende banana?

Tem aula hoje, meu filho?, pergunta a mãe. Isto é, você vai estudar hoje, meu filho? Vai haver aula hoje? E mais: Tem escola hoje? (para dizer se vai haver aula, se vai ‘ter’ aula).

Já o português, quase um poeta, diria: Há bananas a vender nesta casa?

O homem culto, para demonstrar que sabe usar existir no lugar de ter, diria: Existem bananas para vender?

E a frase ficaria audível, simpática, própria de uma linguagem simples e correta? Correta, sim, mas não atraente, e muito boçal, parecendo que o uso é propositado, a demonstrar um saber mais culto que o outro. Não cairia bem no dia a dia, na esquina em que seu Manuel, o dono da vendinha, é homem simples, de pouco conhecimento linguístico. Falemos como ele fala, desçamos do patamar exibitório para o mais simplório.

Se o professor está numa aula poderá dizer a seus pimpolhos que esses três verbos têm sua equivalência.

‘Tem’ uma confusão danada ali na esquina.

Existe muita confusão ali na esquina.

Há um tumulto ali na esquina.

Cada qual com seu ‘pedaço de terreno’, com seu falar local ou regional para dizer o que pensa.

Dr. Ivan Claret Marques Fonseca, médico, nascido em Santo Estêvão, Bahia, mas radicado em Nanuque, MG (já falecido), meu amigo, do qual ‘corrigi’ muitas obras, contou-me que queria se aproximar de um novo funcionário em uma fazenda. Queria fazer uma nova cerca para divisão de manga. E como não queria usar linguagem difícil (ele também foi muito popular e simples), mostrando o local, disse ao chegante: “O senhor principia aqui, vai até aquela árvore e vira à esquerda, o que dá na cerca em frente. Termina aí”.

O homem olhou, ficou cabreiro, mas disse ter entendido. O ecologista Ivan, ganhador de Prêmio Global da ONU, foi-se embora, e na semana seguinte a cerca estava pronta, meio ‘borrada’, mas estava. Conversaram sobre isso.

Mas o cidadão, um pouco rústico, não se deu bem nos novos eitos a vencer e pediu as contas.

Meu amigo Ivan ficou sabendo por outro funcionário que aquele teria dito: “Muié, num gostei muinto desse médico não, ele fala errado ingual nóis”, referindo-se ao fato de o médico ter usado ‘principia’ no lugar de ‘inicia, começa’, entre outros termos.

Não se pode determinar qual verbo o regionalismo use (começar, iniciar, principiar). O interessante é vermos a variedade; deixar o homem do campo demonstrar seu modus vivendi no falar, no comer, no andar, no fazer. Isso é mais interessante.

Assim, alguém teria a mania de dizer que galinha não ‘bota ovo’, que ela ‘põe’. “Pura bobice”, diria meu amigo Zetinho de Cachoeira Grande, distrito de Jacobina, Bahia. Galinha bota, põe, deixa cair etc. Tudo vale. O importante é que ele colha os ovos das galinhas poedeiras todo dia, das galinhas botadeiras ou algo parecido.

Se nosso falar usa ‘bota, põe, coloca’ etc. não importa; deixemos as variantes suplantarem nosso receio de usar isso ou aquilo. Convidemos Cecília Meireles para uma palestra. “Ou isto ou aquilo”, verdadeira poesia a encher nossos olhos, nossa boca e nossos ouvidos.  Tudo vale e tudo está correto.

Isso basta.

Pausa: Por que uma universidade anuncia seus cursos apenas com gente famosa na estampa do imenso cartaz? Se fosse pessoa simples, o curso não seria bom? A escola não seria boa? O estudante se motiva a estudar ali só por causa do famoso? E o famoso estuda lá?

Valem as notas tiradas por seus alunos nos estágios obrigatórios, inclusive os egressos; valem os dados estatísticos; vale a nota mínima dada pelo MEC aos cursos da Instituição.

A universidade passa a ser importante somente pela propaganda dos famosos? A verdade é que eles passam a ganhar mais dinheiro sob o prisma da lei do menor esforço, e passam a falar em desigualdade social. A tão sonhada isonomia social é utopia, e o famoso não precisa de tanto dinheiro para viver, mas se ostenta. Convide a Instituição um ex-aluno para divulgar sua performance, fazendo com que seu egresso se torne um cidadão do meio em que vive.

João Carlos de Oliveira

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