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“Acabei de falar com meu ‘adevogado’ (sic), que me aconselhou a ficar calado”

‘Adevogado’, ou ‘adivogado’, constitui erro de ortoépia. A dificuldade da pronúncia correta gera esse acréscimo fonológico, que iria facilitá-la, mas deixa o falar culto atrofiado. Esse procedimento é a epêntese, inserção de um ou mais fonemas no meio da palavra. Barbarismo ou solecismo?

O solecismo, especificamente, é caracterizado por erro de sintaxe de concordância (o povo falaram), de regência (você concorre o prêmio) ou colocação (o meliante que evadiu-se do local). É solecismo claro a troca de onde por aonde: Onde você vai agora? (aonde); Aonde você está? (onde).

Quanto a grafias e pronúncias, encontram-se estas: ‘impecilio, antulho, cabeçário, mortandela’.

É evidente que a grafia do título nos assusta, ainda mais no próprio meio jurídico em que alguns causídicos se referem a colegas como ‘adevogados‘, com soletração clara!

Por que isso? Porque existe a tradição do erro, que não é somente do iletrado, sob a ótica da defesa imediata: “Sempre usei dessa forma e ninguém nunca me corrigiu.” O bom-senso iria corrigir alguém, sem mais nem menos, em plena reunião de classe?

Há quem duvide que o correto seja empecilho, antúrio, cabeçalho, mortadela.

Consta do artigo anterior que “Lutar com as palavras é a luta mais vã“, do eminente Drummond. Mas a luta para que alguns tenham cuidado com pronúncias, até corriqueiras, não pode ser em vão, deve ser constante. Ouvimos ‘tiro, foguetada, estrondo, pipoco, estampido, estrépito de cavalo a galopar, estrugido’ etc., jamais uma boa pronúncia. “Quero dois ‘jôgo’ (sic) da mega”. Além do plural esquecido, a metafonia se foi: dois jogos (som aberto).

O professor Luiz Antônio Sacconi, autor primoroso de Nossa Gramática, pela Editora Moderna, relata-nos: “A Ortoepia trata da correta enunciação dos fonemas de uma língua”.

Estamos na esfera da Fonologia. E parceira da Ortoepia, ou Ortoépia, a Prosódia também sofre. Como sofrem juntas!

Espanta-nos um letrado pronunciar ‘eu desiguino’ (eu designo) ou ‘ele desiguina’ (ele designa), mas ficamos admirados ao perceber uma senhora, talvez de origem humilde, pronunciar com segurança “O senhor tem organdi?” (termo de origem francesa, que indica espécie de musselina leve e transparente). Certamente, aprendeu a pronúncia correta com sua querida mamãe, em tempos idos. Uma jovem, voltada a não consultar o dicionário ou o vizinho, poderá não saber o que é organdi.

Um teste com a palavra rocio (ro-ci-o, orvalho poeticamente), numa aula de Português, provou o alunado atônito. Unzinho, sequer, a teria pronunciado corretamente. O método é verificar a ausência do acento gráfico e buscar palavras com terminação idêntica: casario, corrupio, elogio, esguio, feitio, macio, vazio, xibio; acaricio, anuncio, pericio (formas verbais). A dúvida é dissipada após esse ato: ro-ci-o, como a-nun-ci-o, e não ‘-cio’, como foi admitido.

Palavras comuns sofrem na entonação estranha de alguns incautos, que, dia e noite, noite e dia, ignoram a adequada soletração, a boa entoação para que o fonema, unidade sonora do vocábulo, não venha a ser desprezado. Ab-rup-to, so-no-lên-cia, ad-vo-ga-do, so-er-gui-men-to, a-dap-to, con-sig-no. E outros.

Sabemos que há vícios de linguagem, incluídos os relativos à pronúncia correta, mas os excessos, os repetidos lapsos sonoros nos intrigam por não serem vindos de gente iletrada, mas de classe abastada de currículo recheado de cursos de graduação e pós-graduação e outros quejandos. Insistem eles em permanecer no mesmo patamar de quem jamais frequentou ‘os bancos escolares’, bordão que se alastrou pelo País para dizer que alguém ‘foi à escola e se formou’.

Os primeiros-socorros. Nãos os primeiros-socôrros. Roubar, não ‘róbar’. E a lista se estende.

O chofér (estamos falando de pronúncia). Gratuito, o certo; não gratuíto. Essa forma arranha, arranha o céu, os tímpanos, os olhares, os saberes, os dizeres.

O roubo do carro. Roubou o carro.

O erro (que é grave) da acentuação tônica de palavra chama-se SILABADA (letras garrafais chamam a atenção).

Sabemos que locutores, e quanto à dicção são muito bons, cometem erros graves de pronúncia. Isso desagrada. Vai-se ao chão quando o grande âncora diz “O corde nacional”. Logo depois, o outro diz com voz macia “O recorde nacional”, suave, sem nenhuma ostentação. Fica bem ouvi-lo. Parabéns.

O bom advogado diz “O álibi do réu foi infrutífero”. E soma pontos.

O médico cuidadoso diz “bis-tu-ri”, e lá vai ele com sua ferramenta fazer mais uma cirurgia.

O turista visita Andorra, o principado, assim como esteve em Mônaco e voltou com a ponta da língua afiada, como a Navalha na Carne, peça de Plínio Marcos, que também virou filme em que Vera Fischer eterniza a prostituta que sofre na índole de um cafetão.

A cinematografia brasileira já deu clássicos, como O Pagador de Promessas, adaptado da peça de Dias Gomes, em que Anselmo Duarte é o ícone: ator-diretor, com estupenda interpretação. Esse filme, o velho ou o novo, é mesmo estupendo!

O avaro morre de fome e guarda o dinheiro no banco. O perdulário é o oposto, mas a avareza dói, consome a saúde e o bem-estar.

O chefe cometeu um blefe e se deu mal, de mal a pior. O mau motorista sai ileso de um acidente e não é julgado por ato doloso. Que aberração!

O apresentador quis distinguir o certo do errado e assustou a plateia: ‘distingüir‘ nunca teve trema (que deixou de existir) nem antes nem agora. O pior é agora, que, mesmo sem os dois pontinhos do olho-mágico sobre o u, continua em voga na boca cheia de cuspe.

Nesse ‘ínterim’, aconteceu um fato. Que palavra bonita! Além de poética, diz muita coisa: nesse entretempo, o mundo desabou, e o homem não foi à missa. Continuou pagão, não é deísta nem praticante, e quer chamar a atenção pela sua fala atravessada, pipoca ululante em panela de pressão. Panela de barro é boa para fazer cozido, como o ebó soteropolitano.

O perito. A ponte pênsil. A boa pegada. A xérox. A indústria têxtil. O recém-nascido. Jamais “O cem-casado viajou”. Acha que não soa mal? O que é isso, companheiro?

Vamos listar alguns vocábulos?!

O restaurante (qualquer outra pronúncia é doída; se for de locutor de carro-volante, ainda passa, mas sofre todos os dias na fala da TV).

Perdoe o homem comum que possa confundir imprensa com impressão, pressão alta com prensa. E lá vai ele subindo os degraus (jamais degrais) da escadaria do palácio popular da vida e tasca “Tive a imprensão que ia morrer”, mas não morreu, e a sonoridade estranha voou pelos ares: o eco produziu-se no espaço sideral e foi até a Lua, que lhe disse ‘não’. Está ruço. O russo gosta de vodca. O homem lá do sertão, cuidadoso, tem vergonha de falar errado. Só erra quando não há outro meio ou alguém por perto que lhe atenda a ‘pregunta’ (forma correta!): “Cuma é qui nóis fala mermo – defluxo ou ‘difluxo’? Condor ou ‘côndor’?

Fale rasgado: o líquido da garrafa fluiu. O líqüido mais nobre é a água pura! Não há trema, amigo! A colocação é apenas para dizer que a segunda pronúncia pode ser com a boca cheia de partículas gustativas.

Raspar o tacho. Rapadura ou raspadura. Tanto faz como fez.

Má-pronunciação. Má-pronúncia. Má-criação. Malcriação. Eta Português danado. Quando se pensa que é errado, é certo. Quando a gente pensa que é certo, é errado. A gente vamos passear no parque. Prefiro isto àquilo: a sintaxe nos ensina que o coletivo, embora expresse mais de um, exige o verbo no singular: a gente vai, o agente foi, a turma já saiu, o fogaréu queimou o rancho do camponês. “Coisa engraçada é gente velha. Como comem!” (Machado de Assis). Eis uma silepse de pessoa.

Mobilhar, mobiliar. Águo, jamais ‘aguo’ (a-gú-o), porque assim a água não sobe o morro.

O cidadão exigente quanto à linguagem está numa pequena cidade. “Eta vida besta, meu Deus!” (Carlos Drummond), e fica horrorizado com tanto erro de Português nas ‘pracas’ (hoje, é nos ‘autudór’). Viu uma maravilhosa e foi cumprimentar o dono do letreiro.

“O senhor está de parabéns. Esta foi a única frase correta que vi em sua cidade. “Barbearia Águia de Ouro”.

“O que o senhor disse? Não estamos numa barbearia. É Alfaiataria ‘Aguia’ de Ouro (Agulha). Nóis errou foi o acento?”

João Carlos de Oliveira

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