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“Olá! Tudo bem? Preciso falar com sua mãe. Ela está?”

“Está, mas não pode atender”, diz quem está à janela.

“Por que não pode?”

“Porque está ‘de regra‘ e não pode nem sair do quarto”, confirma.

A conversa se estende por algum tempo.

O que é isso, companheiro? O que é ‘estar de regra’? (Ou ‘regras’.)

Esse traslado semântico (a palavra muda seu significado) nos pede que o não julguemos mal-costurado.

O regionalismo linguístico é fantástico, tem aspectos multicores, multiculturais; ‘múlti’, sim, pois é amplo. A riqueza vocabular, o sotaque, a semântica, os termos com sentido específico ou local. E vão nascendo outros deleites dos saberes e dos falares, pocando os pensares de quem não conhece o metiê variante da linguagem.

Pereba na perna pode ser documento de identificação!

Encanta-nos o linguajar ‘limpo’, poético, natural (assim pode ser chamado) de pessoas que não veem maldade nem têm pabulagem com o que dizem e pensam.

O de-comer, com sotaque, envolve muitos tons. Alguém comentou: “Mamãe, ligeirinho, fazia um ‘dicomê’ pra nós, já que lá em casa faltava muita coisa.”

Nomes de algumas ‘prantas’: a quixaba, que dá saboroso fruto arroxeado parecido com a jabuticaba; a algaroba, específica do Nordeste, leguminosa de vagem amarela, quando madura, serve de alimentos a cavalos, burros, jumentos, cabras, carneiros e bois, de sabor adocicado. Animais não são confundidos: o jegue nunca é um burro, mas pode ser o jumento que pega no pesado, e um chamado jumento-pega, se garanhão, cruza com a égua e dá a mula de cavalgadura ou da lida com o gado; a avantajada, mestra-guia, é a madrinha da tropa; a vaca craúna é boa de leite; o galo pedrês canta alto; o tô-fraco fêmea só bota ovo em lugar escondido, que só pode ser apanhado com um rodo (puxado; se meter a mão, fica cheiro e o rebanho abandona o ninho). Vai procurar lugar mais longe e bastante difícil de ser encontrado.

Então, o que é regra?

Todos sabemos que regra é norma, princípio; a ordem, a disciplina, tudo que deve ser cumprido por ter-se tornado obrigatório naquele condado ou distrito, ou mesmo, no rincão mais antigo em que somente o rei mandava. A monocracia, que, contestada, deixou marcas indeléveis, tiranas que foram, como a história envolvendo a donzela Joana d’Arc, queimada viva em Rouen, cidade francesa, por querer ser um membro do exército monárquico. Descoberta, após vestir-se de homem, acusada de apostasia, foi morta em fogueira pública. Regra cruel! Sistema similar ao medievo horripilante!

O viés democrático dava eclâmpsia no ditatorial do Poder.

Mas há o outro lado.

Do Latim ‘regula‘ (proparoxítona), regra é palavra polissêmica, isto é, seu significado abrange várias nuances. Regra é o exemplo, o modelo, e se tornou até estatuto de ordem religiosa.

Coma com ‘regra’: moderadamente, para não ficar com empachamento, isto é, com a barriga inchada, empachado. Se a comida está regrada, a economia caminha na mesma vereda.

A Constituição é a regra maior, que contém as rédeas do viver civil, da civilidade moderna. O direito e o dever do povo estão contidos na Lei Maior, a Carta Magna, regra suprema de uma Nação. O poder nasce do povo e para o povo é voltado.

Regra é a prescrição que emana de uma autoridade, do próprio poder (decreto, ultimato, busca e apreensão), e, coletiva, abrange a vida de todos, nascida que é do uso habitual. A jurisprudência nasce dos costumes, e, consolidada por uma autoridade (desembargador, através de um acórdão; juiz, ministro) vira obrigatoriedade legal. Agora, é lei, norma, diz quem manda; e ai de quem descumpri-la ou abominá-la fazendo apologia ao crime, à vadiagem, ao vandalismo, ou a tudo que prejudique o direito de ir e vir.

Por que não ficar aborrecido com um grupo de ciclistas que faz passeio pela cidade apregoando o respeito ao meio-ambiente? (a bicicleta não polui), insinuando que esse esporte é requisito moderno, via politicamente correta, mas cada um vai ao trabalho em carro de luxo!

De repente, essa galera, senhora de si mesma, descumpre a regra ao direito do vizinho: faz uma fila transversal na calçada (que é pública), mesmo que seja em frente à loja que a atende. Obstrui a passagem de quem caminha no ‘passeio’. A isso se chama, em linguagem do juridiquês, ‘obstrução à acessibilidade do transeunte’. E se vier um cadeirante? Nunca viu essa imagem? Em um momento, alguém tem que ‘rodear’ a calçada, e a turma nem ‘tchum’!

Chega de prosa! Regra não é só o que diz respeito à lei.

Qual a ‘regra‘ de que estaria acometida aquela senhora que não pôde atender?

Estava com mênstruo, e por isso não poderia sair nem atender nem cozinhar nem trabalhar. Nadica de nada.

Em outros boqueirões de nosso sinuoso torrão, esse fluxo sanguíneo (indesejado?), que, outrora, metia medo, é o popular paquete (^).

Quando teve a menarca (sua primeira menstruação), foi advertida de que, chegado aquele dia (em que o sangue verte pelo canal vaginal), tinha que ficar quietinha em seu canto.

A regra, caro leitor, você sabe, não é a norma legal, mas a imposição do corpo para deixar a mulher apreensiva. Estando em estado ‘interessante’, que requer cuidados, embora não seja gravidez, não podia comer carne de porco nem peixe de couro (como o bagre, chamado jundiá), porque tudo isso é reimoso, isto é, pode fazer mal. (Remoso é o usual.)

O linguajar chulo diz que ela está ‘de boi‘. Regra é mais bonito. Menstruada, hoje, a modernidade não a impede de fazer o que deseja, nem ‘aquilo’.

Via de regra, qualquer dicionário explica muito bem o que é regra no meio social, a etiqueta, e uma atormenta a cuca de todos nós: regra de juros, que assoberba e inverte a lógica. Por quê?

Uma regra pode ser uma régua, ou vice-versa.

Em regra, todos sabemos que nem todas as regras são benéficas, mas as regras do Poder, que nos deixam trançados como réstias de cebolas, têm que ser cumpridas, custem o que custar.

O nosso lampião cultural alumia todos os olhares. “Ele está de regra, por isso, pela manhã, só toma um cafezinho” (está ‘de dieta’).

O cidadão conta que sua mãe, quando tinha neném, ficava presa no quarto por até quinze dias, para não dar estupor, o que podia lhe causar a morte. Vale o termo popular ‘estoporo’, um calor bravo que mata em poucas horas. A criada que torrava café ficava três dias sem tomar banho. Se saísse ao ar livre com vento frio, podia ficar com a boca torta.

Você já esteve de piriri alguma vez? Consulte essa palavra no glossário do mineirês ou do baianês que vai ver os muitos significados que tem.

Bom lembrar a alguns incautos que, na decrepitude, homem não tem menopausa (coisa de mulher), mas andropausa (coisa de homem).

“Eu não cresci de ruindade, mas pensar, nós ‘pensa’, porque a cachola é boa”.

Até nós ‘se’ ver outra vez.

João Carlos de Oliveira

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