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Cinismo e cenismo. Muda-se um fonema, e mudam a palavra e sua semântica

A cada momento, pronunciamos um novo termo, atual ou antigo; às vezes, podemos não saber o que significa.

‘Cinismo’ ou ‘cenismo’?

Cinismo circula à vontade no meio popular quando a ironia e a crítica se fazem ‘donas do pedaço’, mas cenismo, não. Como ‘dador’ de aulas de Língua Portuguesa, ‘cenismo’ me veio à mente a partir de livros didáticos, e não foi há muito tempo. ‘Irmão gêmeo’ da grafia ‘cinismo’, é vício de linguagem citado nas gramáticas, mas não exemplificado. 

Compulsei (irmão sinonímico de ‘consultei’) vários dicionários e nenhum deles, nenhunzinho, deu um modelo de cenismo. A definição parece óbvia, mas o exemplo fica ‘morto’ no subconsciente, apenas como hipótese. 

O grande Caldas Aulete (‘edição de meu tempo de menino’) diz isto: “Cenismo, s. m. (ret.) vício que consiste no emprêgo de palavras de várias línguas no mesmo discurso. F. gr. Koinismos” (sic), vol. I, p. 672.

Subentende-se que a referência a vício seja o ‘de linguagem’, mas não há exemplo. Outro item a discutir: ao serem usadas, as palavras estariam em grafia de origem ou já aportuguesadas? No meu olhar, esse lapso mereceria uma chamada. Sob o olhar dos compêndios, por dedução de autodidata ou lógica, seriam em grafia de origem. Fora isso, todo o nosso idioma seria puro ‘cenismo’, pois nossas palavras são vindas de quase todos os idiomas fluentes no mundo atual. Além do Tupi-Guarani, do Africano, do Celta, o Inglês, o Francês, o Árabe, o Italiano e o Espanhol, e outros, são nossos parceiros por nos conceder os chamados ‘empréstimos estrangeiros’.

Um menos erudito informa: “Cenismo, s.m. Vício de linguagem, que consiste em empregar na mesma obra palavras de várias línguas” (sic). Discute-se nessa definição o fato de ser ‘obra’. Por que não, apenas, ‘no mesmo contexto’ ou ‘na mesma frase’? A vírgula após ‘linguagem’ peca; assim, todo vício de linguagem teria esse princípio. 

Um escolar nem cita ‘cenismo’. Na relação alfabética, passa de ‘cênico’ para ‘cenóbio’. E só. Uma omissão gritante. 

Este tema seria amplo no estudo encabeçado pela Filologia, que trata da análise crítica das palavras; da Estilística, que analisa o comportamento dos escritores na sua linguagem, livre ou metódica, ou da Etimologia, que envolve a origem das palavras. Tema que demanda pesquisa em doutorado ou mestrado de algum notório em instituição de renome, deve estar ‘no forno’ em algum cantão nacional. 

Entre esses vários que estão nas minhas estantes empoeiradas, visitei o último, que registra: “Cenismo sm (gr Koinismós) Gram Vício de linguagem que consiste em misturar, em um mesmo escrito, palavras de várias línguas ou dialetos” (sic). Parece a definição mais sensata, mas… e o exemplo?

As Gramáticas Normativas em meu acervo, pobre como um Jó de pouco dólares, não me deram retorno. Faltosas também.

Suponham-se dois casos: um com grafia original e outro, não. 

“A orquestra in concert, em hobby costumeiro, foi aplaudida pelo povo, por poetas e cosplayers de todo o Universo; havia premier, geek, hackers estilizados de inocentes e gangs disfarçadas de entidades filantrópicas”.

Esse serve? E se um bom escrevinhador juntasse, no mesmo parágrafo, ‘blog, web, drone, in natura, fake news, cosplay e net’, entre outros?

“O Brasil é um dos países mais diversificados do Planeta, mas tudo de forma desorganizada. Somos, inclusive, segundo os críticos da violência e da homofobia, um povo dissimulado quanto ao racismo oculto, dito ‘camuflado’ na visão de outros”.

Buscando a origem dos principais termos, teríamos nesse enunciado torto um bom exemplo de ‘cenismo’. 

Quais os seus?

Letrados alhures adoram escrever ‘stress’ e não ‘estresse’, que não teria o efeito visual desejado nem o sotaque específico de um falar diferente. Termos em evidência na mídia, de idiomas diversos, dariam cenismos chamativos. ‘Menu, premier, dossier, milk-shake’, e mais outros, seriam uma miscelânea pouco simpática.  

E ‘cinismo’ de onde vem, o que é? Nasce de ‘cínico’, que vem do Grego ‘kynikós‘, próprio do cão, canino. Estaria correta essa acepção? Sim, no passado; atualmente, desusada (ainda bem). Hoje, usamos cínico para dizer ‘alguém pertencente à seita filosófica dos que desprezam as conveniências e fórmulas sociais’, no rastro da Historiografia. No popular, é o inconveniente, impudente (despudorado, sem-vergonha; confronte com imprudente). 

O cínico descumpre norma de convivência e acha graça do fracasso alheio, considerando que estaria certo. 

O cinismo seria uma aberração comportamental? Que sinônimo você dá para ‘cínico’? Descarado, desrespeitoso, abusado?

Cabe, pois, a logicidade aventada no início de que ‘podemos não saber o que significa’ o vocábulo (diferente) que surge à nossa frente, ou saber, sabemos, mas sua dimensão é mais ampla que a imaginação pressupõe. 

Começa a nossa luta para apurarmos até que ponto o termo empregado está correto. 

Cinismo e cenismo, portanto, não pertencem à mesma família etimológica nem comungam o mesmo princípio semântico.  São, apenas, parônimos, com significado próprio, que nos podem confundir. 

Ao cenismo, que vive ‘calado’, perguntaríamos ‘que significado tem, por que nos deixa sem resposta’? 

Buscando o dicionário, cinismo, no popular, é desfaçatez, o descaramento, a sem-vergonhice, a desvergonha, a descaração. Fora isso, a Filosofia ensina: ‘sistema filosófico dos cínicos’ (em que a malandragem de quem não acata deveres sociais mente, e ri do pobre coitado). Houve forte evolução semântica da palavra: o cínico grego, do tempo helenístico, abusado, descumpria as normas sociais de todas as formas, e consideraria que estaria certo. A História conta que Diógenes, um filósofo (cínico), foi o maior representante dessa Escola (de vida!). Andava com uma lanterna acesa, durante o dia, à procura de um homem ‘verdadeiro’. Ficava sentado, no mundo da Lua, esperando um ‘para manter um papo ilógico’.  

Cenismo é outra coisa, bem diferente: nascida do Grego ‘koinismós’, é um vício de linguagem que consiste em usar, no mesmo texto, palavras de idiomas diversos. O Jornalismo moderno, para caracterizar seus textos de múltiplos valores, faria uso dessa modalidade de escrita, que não seria perceptível aos olhares comuns?

Quer um exemplo?  No ‘restaurant’, o ‘galán’ ‘galant’ pede ‘sandwich’ à moda ‘gourmet’ recheado de ‘mortadella’ ou ‘salame’, alface, ‘mayonnaise’ e tomate. 

Essa ‘pérola’ seria cenismo pela mescla de Francês, Espanhol, Francês, Inglês, Francês, Italiano, Italiano, Árabe, Francês e Náuatle, respectivamente. 

Náuatle, idioma extinto, falado pelos astecas, deu tomate, de ‘tómatl’; ‘al-khass’, do Árabe, alface. 

Se pedir mais um prato, o ‘menu’ terá ‘cuscuz, tapioca, suco, sorvete, banana-split, banana-smoothie’, um mundo de linguagem imperceptível. 

O comentário a partir de agora se fecha, ficando apenas a citação de vocábulos à guisa da troca de fonema, elemento básico das palavras, menor unidade linguística que dá sentido ao que escrevemos e falamos. Linguagem técnica: menor unidade linguística que distingue signos da cadeia falada. Signo não é o mundo do Horóscopo, mas cada som da fala ou cada sinal da escrita. 

A troca pode ser no início, no meio ou no fim da palavra. 

Cemente, semente; censo, senso; foz, noz; bata, cata, data, gata, lata, mata, nata, pata, rata; cemento, simento; vedar, velar, vetar; pato, pata; ata, até, ati, ato. 

Algumas trocas aleatórias: faca, fica, foca; testículo, textículo; cenema, cinema; cinéfilo, cinófilo; cinofobia, cinegrafia; Gregório, gregário; denso, tenso, lenço, pênsil, penso, passo, paço, paro; sito, cito; heroica, paranoia, paranoica.  

Outro idioma também pode ter ou seguir o mesmo caso: em Inglês: barn (celeiro), Bern (topônimo, nome de cidade suíça), Birn (sigla), born (nascido, nato), burn (queimadura, queimar). 

Faça sua lista. 

Até a próxima.  

 

João Carlos de Oliveira

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