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‘Faz o que pode’. ‘Fez o que pôde’. Qual o tempo da segunda forma verbal em cada enunciado?

Seria possível entender a mensagem sem o acento circunflexo diferencial no segundo enunciado? Observado o tempo da forma verbal ‘fez‘, a depender, ainda, da análise de quem interpreta, sim; mas, para melhor ‘claridade’ do que se diz, o acento circunflexo elimina qualquer dúvida. A ortoépia de ‘pode‘, presente, com som aberto, e ‘pôde‘, passado, com som fechado, auxiliam a visão do usuário, tanto na fala quanto na escrita.

Se necessário, ambas as construções frasais podem ser acrescidas de outros termos: Ele (ela, você) faz, hoje, o que pode fazer; Ele fez, naquela época, o que pôde fazer.

O acento diferencial deixou de existir a partir da Lei Federal de número 5.765, de 18.12.1971, que o aboliu, cuja função seria ‘distinguir’ o som fechado do aberto em vocábulos homógrafos. ‘O gorno’, substantivo, cuja sílaba tônica tem pronúncia fechada, a diferenciar de ‘Eu governo’, forma verbal, de som aberto. Como o vocábulo deve ser considerado no contexto, a exigência do acento se tornaria secundária, e como nosso idioma teria, ou tem, excesso de sinais gráficos, veio ‘a ordem’: mandá-lo para o arquivo morto.

Assim ficou decidido por sugestão da Academia Brasileira de Letras: as vogais tônicas –e e –o, com pronúncia fechada, deixaram de receber o acento diferencial circunflexo (^) diferenciando-se de homônimos homógrafos cujas vogais tônicas tinham pronúncia aberta.

Grandiosa ‘abolição’ gramatical do corriqueiro grafar de um idioma com muitos percalços. Todo dia sofre um revés!

Bom lembrar que as mesmas vogais abertas não recebiam esse acento gráfico, fato que mesmo uma visão leiga entenderia desnecessário. Não se usaria ‘Eu govérno’.

A relação de palavras é imensa. Alguns exemplos já servem de norteio para quem quer conhecer essa curiosidade da língua pátria, que, em boa hora, deixou de existir, ficando menos palavras para serem acentuadas graficamente. As dúvidas é que se mantiveram.

O apêlo, o cêrco, o tropêço; o enrôsco, o namôro, o sôpro (substantivos) para diferenciar, por conseguinte, de eu apelo, eu cerco, eu tropeço; eu enrosco, eu namoro, eu sopro.

Em seguida, a Lei determina abolir o trema usado em hiato átono. Como se dava esse processo? Saudade, com três sílabas, poderia ser transformada em ‘sa-ü-da-de’, com quatro sílabas, métrica usada na contagem de sílabas poéticas. Camões, em sua poética, fez uso dela. Esse processo métrico-silábico é a diérese: transformação de ditongo crescente em hiato, destacada pela presença de trema, justamente, o que foi abolido. Seu oposto é a sinérese. Esse trema não foi o que continuou a ser usado no dia a dia, como em ‘seqüela’: o ‘u’, precedido de g ou q e seguido de e ou i, quando pronunciado, por formar um ditongo crescente, recebia o trema: agüenta, enxágüe, tranqüila, eqüidistante, o professor argüiu o aluno, o aluno foi argüido pelo professor. A atual Reforma Ortográfica é que o aboliu recentemente. O trema não é mais usado em nosso idioma. Um grito nas alturas: a boa regra gramatical não endossa a grafia ou pronúncia ‘o aluno foi arguído pelo professor’. Continua ‘arguido’, sem trema, mas mantida a boa ortoépia. Outro: existindo g ou q seguido de e ou i em que o u não é pronunciado, justamente, por isso, é que se tem dígrafo: aquele, aquilo, naquele, que, quero, querosene, regue (as plantas). Dicionário há que diz o oposto.

Em 1971, também, ficaram abolidos o acento grave (`) e circunflexo (^) usados em sílabas subtônicas de palavras derivadas terminadas em ‘mente’ e outras terminadas com os sufixos ‘zal’ e ‘ zinho’.

Entenda: toda palavra tem sua sílaba tônica: rápida, café. Os derivados rapidamente e cafezal passaram a ter duas sílabas em destaque: , a tônica, que se tornou subtônica, e a nova tônica, men; assim,e zal, respectivamente, razão por que as grafias passavam a ser ràpidamente e cafèzal, estranhas nos dias de hoje, mas comuns naquela época; e mais: sòmente, econômicamente, pèzinho, cafèzinho, estùpidamente.

Já teria visto, em algum local, a grafia ‘cafèzinho‘, com esse acento grave? Se consultar obras editadas até 1970-71, pode encontrar essa e outras, por serem as formas exigidas de então. Estranhas hoje; antes, não.

Esse o escopo da Lei 5.765/71.

Mudanças que ocorrem, hoje, fazem parte da nova Reforma Ortográfica, assunto já comentado aqui, que pode ainda vir à tona. Lembre-se de vôo, lêem, crêem, eqüestre, pára, pêlo, palavras que perderam o sinal gráfico, mas mantiveram sua pronúncia. Voo, leem, creem, equestre (cuidado: a pronúncia é a mesma de antes), para, pelo.

Observe tem e têm: Ele tem, eles têm, grafias que nunca foram alteradas em reforma ortográfica, e não use ‘têem’, que nunca existiu.

Até o final de 1971, se o professor de língua pátria se esquecesse de acentuar graficamente ‘Êle é um bom menino’, o aluno mais atento da sala reclamaria de imediato. Às vezes, não saberia justificar por quê, mas só o fato de a sílaba tônica do pronome ‘ele’ ser fechada, saberia que o ‘chapeuzinho’ seria obrigatório, e ‘gritava’, em seu legítimo ‘jus sperniandi’.

Mas por quê? Porque ‘ele’, pronome da terceira pessoa do caso reto, deveria ser diferenciado de ‘ele’, o nome da letra ‘l’ ou ‘L’ (minúscula e maiúscula). Por outro lado, e esse fato não teria sido relevante na época, se fosse usado o verbo ‘elar’ (criar elo com: elo+ar), ao ser conjugado no presente do subjuntivo, surge a forma verbal ‘ele’, de som aberto, na terceira pessoa do singular.

Elar, derivado sufixal, que supostamente não foi levado em conta já que poderia criar o homógrafo de êle, no presente do subjuntivo: que eu ele, que tu eles, que êle ele, que nós elemos, que vós eleis, que eles elem. Eis o acento diferencial, que distingue o timbre de vocábulos homógrafos.

Buscando outros homônimos, tivemos ‘nôvo”, adjetivo, para diferenciar de ‘novo’, eu novo, do verbo novar, o mesmo que inovar.

Havia uma grafia que me intrigava: ‘tôda’. ‘Tôda’ pessoa precisa de trabalho. Por que o acento diferencial em ‘toda’?

O que é ‘toda‘, de som aberto? Não se escrevia tóda. Levei algum tempo, até encontrar no grande dicionário Caldas Aulete a explicação: ‘toda’ (´), com sonoridade aberta, é o nome de pequena ave jamaicana, também chamada todeiro. Também, toda, mesma pronúncia, é uma das línguas da família dravídica (dos drávidas, indígenas da Índia e do Ceilão).

Salvo melhor juízo, o acento diferencial distingue o timbre da vogal de cada homógrafo; acôrdo, fechado, de acordo, aberto; o diacrítico distingue o valor, diferenciando classe gramatical, singular e plural etc. Pára, verbo, que diferencia para, preposição, é diacrítico, assim como têm, plural, que diferencia tem, singular; contém, singular; contêm, plural; convém, convêm; vêm, plural, diferencia de vem, singular.

Um professor paulista, sabedor de macetes, hoje tão claros, dizia que valeria a palavra no contexto. Simplesmente, o fato de o vocábulo se inserir numa frase, recebendo sua carga semântica, motivo por que se diferencia.

Mesmo extinto o diferencial, ficou a eterna dúvida, razão deste comentário.

Eu posso, tu podes, ele pode, nós podemos, vós podeis, eles podem. Presente do indicativo.

Eu pude, tu pudeste, ele pôde, nós pudemos, vós pudestes, eles puderam. Passado (ou pretérito) perfeito do indicativo.

Embora a semântica deva ser considerada, a grafia precisa ser diferenciada: ‘Hoje, ele faz o que pode‘; ‘Ontem, ele fez o que pôde‘.

O diferencial é um marco. Apenas isso.

 

João Carlos de Oliveira

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