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“Ele é muito enfarruscado”, disse-me meu pai. Esse adjetivo de outrora ainda ‘vinga’ nos dias de hoje?

Essa frase é de um período que se foi. Certamente, esse adjetivo não é mais do uso da modernidade que vivemos.

Que linguagem é essa? Trata-se de um regionalismo? O que é?

A escolha por esse ou aquele termo, no sertão árido de livros, em que biblioteca seria tão novidade como se houvesse ‘caviar no café vespertino’, quando se andava no lombo do burrinho bardoto e o meio de transporte ainda teria suporte no carro de boi, a aprendizagem se dava de ‘pai para filho’. Um membro familiar mais chegado ao ‘bom’ Português dominava palavras típicas para ensiná-las aos mais jovens.

Enfarruscar, ficar buzina, estar possesso, queimar pestana (meio gíria, meio realidade diante do fifó aceso para se ler um livrinho de cordel), fazer o mal a uma moça de família, dar o dia no macaco, ficar de fastio ou empachado, espiar a donzela namoradeira na janela (namorar na janela se estava ali sozinha?). E o sabido não meter a mão na cumbuca.

O amor platônico, ou o pretendente lhe fazia a mais linda serenata, e ela se debruçava sobre o parapeito da janela para ouvir Nelson Gonçalves, Orlando Dias, Miltinho, Jackson do Pandeiro, Marinês, e uma plêiade de arregalar os olhares, estimular os tímpanos, aguçar o pensamento e a recordação, sob o som melódico de uma modinha regional; assim, a vida não seria mera pachorra.

Tu és o maior amor da minha vida“, e Orlando Dias, cantor romântico, ajoelhava-se no palco diante dos fãs embevecidos. Luiz Gonzaga, talvez, fosse neófito, começando a nos encantar com Asa Branca e Mulher Rendeira (‘Mulé Rendeira’).

Interessa o significado de ‘enfarruscado’, tão em si compenetrado, de cara fechada, a ponto de assustar? Já sabemos, mas vá lá.

O enfarruscado é carrancudo, tão circunspecto, que não dá uma palavra. Se for o pai de uma prole de 15, 16 filhos, só o mais velho poderia tirá-lo da ‘modorra’ na espreguiçadeira, que ia e vinha, em plena luz do dia, na varanda larga, e o velho cansado a cochilar. Calculava quantos animais do gadinho pé-duro, o pai de chiqueiro jovem dando guinadas na cabrita sensual do rebanho.

“Essa vai dar boas crias”, e o deixava bem à vontade. Logo, logo, teria mais um filhote, e mais um leitinho fresco, para encher a barriga magra e deixar o ‘coroné’ todo feliz, e a sobra vender para o vizinho, fazer um queijo e alimentar o menino franzino. O parrudo bastava comer feijão de corda com torresmo.

E pegava no sono.

Palavras assim se foram, e a lista ‘vai de uma légua à outra’, da Água Branca ao Garajau, de Itapeipu a Salaminho. Ai de quem as usar hoje no meio midiático em que vivemos cheio de melindres! Se se atrever a usar em público solenemente, os olhares estupefatos protestam. E a pergunta imediata: Ele é de onde? Por que fala desse jeito, que sotaque é esse?

Temos ou não temos preconceito com certos vocábulos?

Claro, que há. E ostensivo. Consideram ato discriminatório chamar um menino de ‘parrudo’ ou ‘parrudinho’. A não ser que lhe seja parente, ou tenha muita intimidade com seus pais.

Numa cidade, havia uma professora de pernas, digamos, ‘tortas’, assim como seria normal chamar uma criança de zarolha (estrábica só existia no dicionário, desconhecido). Essa mestra era meio cambota, termo usado para designar alguém que tem os membros inferiores meio disformes. ‘Dona Maria perna de fuso’ era muito popular, e simpática, sorria e ia levando a vida. Não se aborrecia. Se houvesse zanga, se peitasse, a coisa pegava, e viria o pejorativo. Não dando liga ao termo que a adjetivava, o ‘pilido’ não pegava, ou, se fosse usado, teria tom afetivo.

“Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”.

‘Ràpidamente‘ (assim se escrevia esse advérbio, com acento grave e entonação forte), a água escura mudava de cor e se tornava branda como o branco suave da Paz. A pomba branca revoava sobre o telhado da choupana, e todos estariam no mesmo ambiente fraternal.

Coitado deste comentarista! Tantos nomes já teve. O baixinho, o cajé, o Joãozinho da gomeia, o João de seu ‘Ocrido’, o rufião cortejador das meninas, Netinho, e, se ligasse para essas pérolas, só haveria contendas. Há pouco, ainda ganhou ‘O garoto da Kaiser’.

O menino que gostava de ler a revista O Cruzeiro, que declamava versos (sem ser bom declamador, até gaguejava), era tido como ‘sabido’, que distinguia ‘mais’ de ‘mas’, porque tinha um dicionário. Sua maninha mais velha (Erenita), chamada de Eremita, de Ermita e outros, e Moisés, de nosso agrupamento, bem enfronhado com a turma, chamava-a de ‘Ganso’, pelo seu jeito de andar. Aliás, se era uma menina, por que não ‘a gansa’? Mas ‘nóis nem sabia certos femininos’, cuja pronúncia poderia ser ‘femenino’, achada bem bonita. A gente não conhecida hambúrgueres, só cuscuz, brevidade e outros quitutes do cardápio regional de então. Um naco de rapadura com um pão de milho ou uma tira de requeijão, feito na fazenda de seu Elias, era de arrasar. E os cantos da boca ficavam ‘oleados’. Guardanapo, não! O dorso da mão servia de lenço. E pronto. Lambia-se o dedo, e tudo estaria limpo.

Ah! ‘Me alembrei’ agora. Meus irmãos tinham os hipocorísticos mais arretados do lugar: Dada ou ‘Trocedor’, Ninha, Taruíra, Minzinho, Zômi, Beguinha, Diezinho ou Zé-lagartixa, Nininho. O outro lado tinha Buiú, Einho, Chocha etc.

O texto serve de recordação para palavras vetustas, que não usamos mais, ou temos algum desaviso com elas: não são hodiernas nem simpáticas.

O que é isso, companheiro? Por que nossa cultura muda tanto? De uma hora para outra, perdemos o cabedal linguístico guardado há anos, o acervo cultural, como o registrado por Luís da Câmara Cascudo, o maior folclorista do Brasil, deixou de existir. Ainda bem que, pelo menos, o povo potiguar o reverencia. Merecidamente.

Melhor esse palavreado que erros abomináveis que existem por aí, e uns, muitos, infelizmente, usando-o somente por ter ouvido ou visto em algum cantão, sem a devida noção de sua carga semântica.

Assim, dispersamos nossa linguagem e nossa cultura e falamos ‘abobrinhas’, como as da gíria ruim, ou matamos a tradição histórica. Sem Historiografia, a Nação morre mais cedo.

Passe o pincel em palavras que outrem as usa somente por modismo ou que estejam nas rodas sociais. Não chame a professora de ‘tia’, nem ensine seu filho a fazê-lo. Ninguém chama o professor universitário, com o qual estuda para ter fama amanhã, de ‘tio’, e por que usar essa palavra com feição pejorativa para a professora do pré-primário, o ‘prezinho’? Não chame uma senhora desconhecida, pessoa simples, idosa, de ‘vó’. É mais que feio. Trate-a bem.

“Bom-dia. Preciso de uma informação. A senhora sabe onde mora aqui perto a professora Maria José?”

E a conversa flui. Falou com a própria. E ambos sorriem. Deu-se uma boa amizade.

Por que o homem mais velho desconhecido, simples, é primeiro chamado de ‘vô’ ou ‘tio’? Quer falar com ele, chame-o de ‘senhor’ e lhe pergunte o nome.

“Seu Manuel, o senhor sabe onde mora o magarefe Juvêncio? É moreno, alto, cabelos grisalhos”, e por aí vai. O resultado é que seria o próprio filho de seu Manuel, ou um amigo, e o visitante foi levado até a casa dele.

Uma professora usa bem o adjetivo ‘lúdico’ com base no texto e naquilo que conduz o aprendiz ao deleite; merece louros. Esse foco vale um milhão de sorrisos.

E vou tomar uma mezinha (primeira vogal tem som aberto) para dormir um sono de rei.

Até mais ver, meu grande!

 

João Carlos de Oliveira

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