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“Cumpadi, já armou o mundéu pra pegar cari?”, eis a grandeza da linguagem regional

Mundéu ‘pra mode pegar mocó’, e um parecido com alçapão pra pegar xexéu.

A linguagem regional que encanta, e a quem tem gosto bucólico, ecológico, ambiental, ‘da roça’, campestre, agreste, rural, natural.

A linguagem regionalista que engrandece a cultura, que a retém e mantém.

A linguagem de uma região que revela a sabedoria popular.

A linguagem interiorana que faz aflorar nosso folclore, que não pode ser ‘corrigida’ para não perder sua grandeza e simplicidade.

As palavras que compõem esse vocabulário, de modo geral, sem precisar citá-las, são de origem indígena (o Tupi-Guarani), o Africano e outros, já incorporadas por influência do convívio com a sociedade, o Latim e Cia.

O camponês vai ao batente e leva na capanga, que seja o bornal, embornal, o alforje (esta é árabe), o de-comer, feito com amor: um naco de rapadura, carne assada, farofa, e feijão escaldado, grosso, com gordura de porco baé.

Leva no cantil um pouco de água se no local de trabalho não há boa cacimba, com água limpa, mas é certo que no Piemonte da Chapada Diamantina há na grota uma fonte d’água soberba. Lá em Jacobina, Ourolândia, por aí, como na Serra do Tombador, mina uma água fresca de dar inveja, e no tempo chuvoso forma uma cachoeira com um riacho a correr, com piabinhas inquietas em busca de comida. Não faz mal pegar algumas com minianzol, amarrado a um cordãonito, pescaria de fazer chorar.

Arma a arapuca, também chamada arataca, nome de cidade baiana (Arataca, no Sul do Estado), para pegar codorna, ou codorniz, ave saborosa depois de assada. ‘Conzida’ fica ótima também. A Caatinga tem várias espécies, e comem de tudo, ou ‘de um tudo’, de brotos, até formigas e gafanhotos e outros insetos. Ou sementes diversas, uma mandioquinha no pezinho plantado com ‘asseio’, batata-doce ainda nova, e o dono fica muito ‘brabo’.

Elas podem acabar com a ‘prantação’ do camponês.

O bom camponês arma o fojo para pegar mocó e não cria filhote de sofrê: deixa-o livre para cantar bonito, o que faz com maestria. Já matou passarinho com bodogue, ou badogue, chamado estilingue, mas não o faz agora, com medo do Ibama, ou das más línguas, e com receio de não estar colaborando com a biodiversidade, com a fauna, a biota, a Natureza em si. O camponês ficou sensível, e pode não mais catar ovo de anum-branco ou anum-preto, na escassez, para comer. A estiagem veio e matou todo o feijão de corda, e o deixou a ver o mundo com tristeza. Até o cabeça-de-frade se tornou raro, e a floração, como a do mandacaru, ficou pobre.

Luiz Gonzaga, valente intérprete desse viver: “Mandacaru quando fulora na seca/ É o sinal que a chuva chega no sertão/ Toda menina que enjoa da boneca/ É o sinal que amor já chegou no coração”.

“Ela só quer, só quer se enamorar (…)”.

“Nóis fala assim mermo errado, porque a modinha é bunita por demais”.

“E ele veve alegre”.

O preá acabou, ou tem alguns na beira do riacho seco. No lajedo, a lagartixa, ou batixó; no campo, não se vê mais teiú, só algum calango verde, chamado de quelônio, nome que não pegou nem vai pegar.

O jaleco só poucos usam. Parece que a cultura vai morrendo aos poucos. O gibão, então, ornamento para se defender dos espinhos do calumbi, cipó terrível, desapareceu.

Tem alguma loja em Jacobina que ainda vende jaleco ou gibão? Talvez, chapéu de couro, e isso é só. O chapéu mais usado hoje, por lá e grande parte do Brasil, é um modelo parecido com o tal ‘Indiana Jones’, feito na China?

Isso é ruim. “Nóis num é chinês, cara!”.

O povo de ‘calça curta’ de Miguel Calmon não usa mais ‘carça’ no meio do joelho, nem gosta desse nome. Às vezes, vem uma história, mas esse apelido pode ofender. Vai caindo no esquecimento.

‘Antigamente’, havia serenata com um violão, pandeiro, triângulo, saxofone, e mais algum instrumento local, a zabumba, e agora é nada, mas vem uma música do ‘soul’ americano. Por que isso?

“Nóis num é americano, é?”.

Um jaleco elegante de couro de ovelha, de ‘uma boda’ bem novinha, que morreu para alimentar a fome do camponês, pouco se vê. Tem um tal de frigorífico que mata os jeguinhos, como isso dói. Mas dizem que ajudaria a manter a espécie viva, já que não querem mais andar montado no jumento. Tocam o gado pé-duro até em moto (‘a mota quebrou, pai!, e como vou juntar o gado?”). Isso é ruim.

O jereré deixou de existir, porque o riacho ficou poluído, e em parte porque o camponês tem uma tal de ‘bolsa-família’ e não quer mais pesca artesanal, ou tem vergonha de dizer que é pobre. ‘Pobre é o de espírito’, como quer dizer o sabido.

Fisga um jundiá, um cumbá, um mandi, um piau-boquinha, isso vem-se tornando um sacrifício, penúria, porque é crime pegar peixinho na época do defeso, mas as grandes empresas, com pesca comercial, estão acabando com o atum, e outras jogam muitos peixinhos na areia da praia, como se vê em Alcobaça, Nova Viçosa, Mucuri, Caravelas, aqui no Extremo-Sul da Bahia, e como alguns dizem, e alguns colhem um peixinho chamado ‘mi-vale’, ou todo peixinho é chamado por esse nome (‘me-vale’), que põem para secar e mandam ver, isto é, mandam pra dentro da barriga já gorda.

“Tá com a pança inchada de tanto comer mivale, meu fio?”.

O canarim da terra, bem amarelinho, tá cantando aí perto?

Tem cardeal? Coleirinha, sabiá-bico-de-osso, sabiá-laranjeira, azulão? Seriema tem? A bicha canta alto, anda elegante e come cobra venenosa, além de outros petiscos peçonhentos, mas ninguém, que nóis saiba, come ‘siriema’, porque a carne é dura e tem cheiro forte.

No curral, cedo, come cambrecho, leite com farinha, tirado da vaca craúna. Isso acabou? Leite cru, como dizem os infectologistas, faz mal, num é verdade?

O caçuá, ou uma bruaca (de couro cru) ou um cesto para carregar mandioca, a gente não vê mais.

Um dia, morreu uma novilha chitada mordida por cascavel. Ficou com a barriga inchada, e meu pai mandou eu e outro irmão tirar o couro dela, que seria forte, para fazer cabresto, peador, ou mesmo corda de couro cru para amarrar vaca mansa. A faca era cega, e deu muito trabalho. Os urubus rodeando nós. Difícil virar a morta (tava prenhe?) para tirar o couro do lado oposto…

E deu fome. O que comer? Por sorte, tinha um cacho de bananas na palhoça e ‘nóis foi ver: tudo madura. E aí nóis se fartou’, mas o cheiro da carne da novilha morta incomodava por demais.

O timbó batido pra jogar na água e pegar peixe ‘se afogando’. O peixe morre afogado, é? Que coisa horrível! Se não era timbó, era outro cipó parecido com o garajau, que batido era batata: até traíra grande se ‘afogava’, e nóis enchia o cesto. Entinguijava tudo, mas não fazia mal a ‘nóis os humano’.

No pé de jaca tinha uma casa de arapuá, ou arapuã, abelha negra que dá pouco mel, mas tem um samburá gostoso, bem amarelo, que enche a barriga. O ‘pirigo’ é ela entrar nos ouvido, dá muita dor. Tem que botar urina no local, que ela morre, mas dói muito e sai um pouco de sangue, e sara depois.

Se o machado ou facão ‘tivesse’ cego, levava pra seu Isidro, que ele botava no fogo, soprava o fole com o pé, batia o ferro e amolava uma beleza.

Espaço pequeno: encheu ‘uma página e mais’, e ‘nóis tem que parar’, senão o visitante fica aborrecido.

Obrigado por ter estado com nós outros, que escreve ‘barbaridade’.

João Carlos de Oliveira

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