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Precariedade e contrariedade, muito usados, se originam de precário e contrário. E agora? Por que não se formou ‘ordinariedade’ de ordinário?

O sufixo -dade tem imenso uso no Português, nas formas culta e popular.

Quase com a mesma dimensão, tem-se -ismo, usado em inúmeros vocábulos conhecidos (Abolicionismo, Confucionismo, Futurismo, Regionalismo etc.), daí o léxico ter optado por registrar ‘ordinarismo‘, que tem parco uso nos diversos níveis, no lugar de ordinariedade, que seria a tendência semântica e filológica plausível?

Por que esse vocábulo, que rima com beldade, lealdade, sinceridade, não consta dos nossos dicionários?

Qual o significado de ordinarismo? Um dicionário registra: procedimento ou qualidade do que é ordinário; falta de brio, de caráter. E ordinariedade não teria o mesmo valor semântico?

No acervo cultural deste blogueiro, está ali na estante velha de metal, todo ‘posudo’, Caldas Aulete Dicionário, em 5 volumes, que foi o sucesso, a moda, a coqueluche linguística e intelectual dos anos 1950-60, talvez, até 1970. Nem nesse arquivo documental, de origem portuguesa, consta ‘ordinariedade’, que não seria estranho, salvo melhor juízo.

Vamos em busca de palavras conhecidas que seguiriam a mesma derivação sufixal de ordinariedade.

Notório, notoriedade. Então, por que, cara, não se usa essa lindeza de palavra? Pronuncie-a: or-di-na-ri-e-da-de!

Nota-se que -e (em precariedade, contrariedade, ordinariedade), pela sua função fonológica, é vogal de apoio, como em primariedade, arbitrariedade, voluntariedade.

O possível substantivo derivado de comunitário também foi relegado? Por que não se usa comunitariedade?

Eis o destaque de -ismo: Comunismo, embora derivado de comum.

Ordinariedade fincou marco como vocábulo pejorativo? Não pegou por ser ‘vulgar’? Sinônimo de mediocridade, cafajestada, vigarice?

Na linguagem jurídica, usa-se muito de ordinário, pelo ordinário (ordinariamente, via de regra), e no seu lugar, ou paralelamente, não se poderia usar com ordinariedade? O mesmo que de habitual? De costume?

Outros vocábulos, cujos sufixos são vários e se assemelham a -ário, quanto ao aspecto semântico, como os terminados em –ar, –io, -or, -ório, formam derivados com a mesma terminação (-dade), próprio de toda a linguagem cotidiana, coloquial e regionalista.

Por que uns se consagraram, e outros, não?

Uma pausa quanto a vogais e consoantes de ligação: em peculiaridade, de peculiar; peremptoriedade, de peremptório, temos a vogal de apoio, ou de ligação, -i, sustentando a pronúncia, para que não desabe e caia no ‘oceano’ de más pronúncias. Outros exemplos de vogais com essa função: café, cafeicultor; fútil, futilidade; gás, gasômetro; hábil, habilidade; Paris, parisiense; útil, utilidade. A vogal de ligação tem o mesmo papel (direcionamento da pronúncia) da consoante de ligação: café, cafeteira, cafezal; capim, capinzal; frio, friorento; pau, paulada; sono, sonolento.

Ordinariedade, como se vê, também tem vogal de ligação, um controle para nossa prosódia. Com as mesmas dimensões, foi rejeitada?

Soletre com ênfase: sério, seriedade (a propósito, seriíssimo, superlativo absoluto sintético de sério); singular, singularidade; titular, titularidade; vulgar, vulgaridade; vulnerável, vulnerabilidade. Neste momento, o sufixo -ável, primitivo, dá lugar a -abil, antes de receber o sufixo ‘final’ -dade: agradável, agradabilidade; e -ível, fungível, fungibilidade.

Transitoriedade vem de transitório, que se forma de trânsito.

Mais vocábulos cujos sufixos se assemelham a -ário: exterior, exterioridade; interior, interioridade; ulterior, ulterioridade; posterior, posterioridade; onivório, onivoriedade (conhece-os?); executor, executoriedade; espúrio, espuriedade; ébrio, ebriedade; autor, autoridade. Vário, variedade?

Que palavra se formaria de predatório usando o sufixo -dade? E de panfletário? Falatório daria falatoriedade, um falar vagamundo?

Há controvérsias. Se há bárbaro, que forma barbaridade, por que não barbário para formar barbariedade?

Se existe notoriedade, por que não se usa ilusoriedade, de ilusório? Se se usa criticidade, de crítico, por que não se dá vez a uma nova, proibitoriedade, de proibitório?

Prioridade, da família de prior, vem do Latim prioritate, e daí temos prioritário. Que tal a sugestão prioritariedade? Não caiu nos bons olhos de um filólogo ou dicionarista? Se um culto não usou termo assim, o dicionário não registra? Qualquer dicionário, ao que se sabe e seria lógico, tem o máximo dever de registrar termos populares, regionais, assim como o faz com os da linguagem culta, clássica ou erudita.

Não sei, por isso pergunto: nosso grandioso criador de palavras Guimarães Rosa não se interessou por ‘ordinariedade’?

“Sem mais nem menos, o fazendeiro Matraga endiabrado, raivoso com a saída da mulher sem lhe dizer pra donde, tascou-lhe uma sova de palavras, porque, ‘educado’ e humano, não iria usar outro meio. Mesmo assim, praticou uma ordinariedade, a vulgaridade de quem é ordinário, furreca, mesquinho, descumpridor dos bons costumes”, um excerto in Sagarana, por mera suposição, cujo texto maior, o conto-novela A Hora e a Vez de Augusto Matraga, virou filme de sucesso.

Sagarana, tempos depois, tornou-se best-seller, mas anos antes, ao ser inscrito em concurso de contos, essa grande obra do médico-boiadeiro, o escritor mineiro, foi desclassificada; não pegou nem unzinho-terceiro lugar, segundo relato da Literatura Brasileira.

Para ir fechando o debate, o motivo de o vocábulo ordinariedade não ter espaço seria o fato de ser derivado de um derivado? (Ordem, ordinário, ordinariedade.)

Quanto a isso, não. Derivados são derivados, e pronto! Eles têm várias facetas.

Adjetivo deriva substantivo: tolo, tolice; singular, singularidade. Verbo deriva substantivo: dormir, dormitório; pescar, pesca; dançar, dança. Substantivo deriva adjetivo: lúmen, luminoso; alma, desalmado.  Substantivo dá substantivo: parceiro, parceria; futuro, futurismo; sarampo, sarampão; copo, copázio. Adjetivo dá adjetivo: asco, asqueroso. Adjetivo deriva verbo: pobre, empobrecer; louco, enlouquecer. Substantivo deriva verbo: ferro, aferrar; pincel, pincelar; escova, escovar.

O ‘trânsito’ entre primitivo e derivado, ou vice-versa, é múltiplo e caminha em todas as direções, razão por que o motivo mais justificável da exclusão de ordinariedade seria: um douto não a colocou em destaque ou em obra, por isso, não teve ‘seus seguidores’, e a mídia como as redes sociais nem dão a mínima para essa palavra, normal como outras. Há preconceito e discricionariedade contra ela.

O poeta fica triste!

As chamadas formas consuetudinárias devem ser respeitadas, como evidência da cultura regional e brasileira. Os exemplos almofadinha, baboseira, cabra da peste (ou ‘caba’ da peste), cotoco, coitado, doidivanas, mesmice, e outros, são relevantes. Bunda mole é uma coisa; munda-bole, outra.

O dicionário, pois, deve ser abrangente, como quis ver o grandioso Silveira Bueno, um dos melhores filólogos brasileiros, incomensurável em sua visão, cujo dicionário etimológico (ao que parece), ainda, não é popular.

As formas cultas e populares devem estar no mesmo patamar (a meio-pau, isto é, uma não é maior que a outra): todas têm direito de registro. As clássicas, as eruditas ficaram, e uma inusitada, como ordinariedade, não pegou, por que um douto não a fincou no pé da página de sua obra?

Compulsando um dicionário maiorzinho, acha-se esta relação: ordem, ordenar; ordeiro, ordeirismo; ordenação, ordenada, ordenado (com vários sentidos); ordenadamente, ordenador, ordenamento, ordenança, ordenável; ordinal, ordinando (da Liturgia), ordinante, ordinária, ordinariamente, ordinário, ordinarismo, ordinatório. Não necessariamente, nessa ordem.

Por que não constam ordinalidade, de ordinal? Ordinatoriedade, de ordinatório? E ordinariedade, de ordinário?

Busco uma resposta, que pode ser encontrada por outrem.

Ficam meus agradecimentos pela visita.

 

 

João Carlos de Oliveira

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