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‘O sinhô pode mi dá um punhado de farinha pra mode eu tomá um café?’, linguagem coloquial que ainda pode existir

Ainda pode perdurar no seio de muitas famílias, e não seria de propósito. Nem se trata de incultura.

Representa a coloquialidade de quem não foi à escola. Original, própria de períodos anteriores de nossa História, em que o analfabetismo foi mais intenso que nos dias atuais.

Tem, por outro lado, o ‘charme’ de ser autêntica, simplória até, sem a preocupação de o usuário falar ‘errado’.

A fala, representada pela escrita mostrada, tem sonoridade específica, linguagem oral aprendida de ‘pai para filho’, e nunca teria sido discutida.

Gramaticalmente, tem seus lapsos; ainda assim, bonita e espontânea, preferível, em alguns momentos, a outra da atualidade, de algum falante que foi à escola, mas a tem eivada de vícios, como se ouve e se vê.

Basta que vivenciemos o dia a dia em locais públicos para ouvirmos exemplos ‘clássicos’: Vou indo na frente. O governo ele interviu no resultado das eleições. Pediu pra mim falar com você.

Preferível a linguagem ‘inculta’ a uma viciosa, descumpridora da norma gramatical. Uma natural? A outra omissa?

Sinhô‘, foneticamente, tem razão de ser, pronúncia embasada em nossa forma de falar: o Português com açúcar em que vogais têm destaque. O ‘e‘ pode ser ‘i‘: minino, distaque, pirigo, qui foi, rapais? (neste momento, a consoante z tem o valor de vogal incrustada num ditongo decrescente: rapais (de rapaz), arrôis (de arroz), contumais (de contumaz) etc.

O substantivo ‘senhor’ foi tão voraz, que chegou a ser o ‘senhor’ do engenho, o usineiro que criou o ciclo do açúcar no Nordeste, valente  latifundiário, coronel capaz de influenciar em eleições locais e regionais (observando, como continua, que o analfabeto não teve direito a voto). Tornou-se ‘Senhor’ ou ‘Senhorzinho’, antropônimos registrados em cartório.

Seu ‘Senhor’ pode ter sido o dono da única farmácia da localidade, um lugarejo ao pé da serra sem infraestrutura. Água, a do riacho intermitente (ou da cacimba, do tanque, da pequena barragem natural). Energia, a do candeeiro ou a de lamparina a querosene. Esgoto, nem ao menos era ‘conhecido’, termo não-usual em certas regiões. Havia a latrina, local que servia para ‘defecar’ (cujo termo era ‘cagar’), ou despejar ‘dejetos humanos’ que estavam no pinico (o penico); durante o dia, tudo feito no ‘mato’, atrás da moita.

Algumas pessoas chegaram a construir uma ‘fossa possante’, cuja laje seria de madeira local (tapicuru, braúna, aroeira, amargoso; qualquer tipo de madeira de ‘cerne’). A casa não tinha banheiro; apenas, um local onde se pudesse tomar um banho na bacia, se não fosse tomado no pequeno riacho (onde todos se serviam, mudando apenas o lugar frequentado; curioso é que poderia haver o local ‘das muié’, respeitado pelos homens, a que crianças não iriam; e o ‘dos home’, também respeitado pelas senhoras da vila.  As moçoilas teriam que ir ‘banhar’ à tardinha em local escondido, todas peladas, jogando água nas ‘zanzoutras’.

Derivando mais um verbete do vocábulo ‘senhor’, surgiram nomes próprios de então hoje desusados: Dona Senhorinha, Maria Senhora das Dores, e possíveis combinações,

Esse ‘retrato’ estampa que houve certa evolução cultural, algo muito bom, mas se perderam costumes de autenticidade grandiosa, em que o ‘fio de bigode’ poderia ser a marca de bom negócio, de uma barganha proveitosa para ambos os cidadãos, sem um enganar o outro.

E nestes dias turbulentos? A desconfiança toma espaço, a intenção de burlar vira ‘coisa’ de gente sabida (‘Mal dos sabidos se não fossem os bestas’, dito popular), e chegamos ao momento de falsificação de documentos, de falsidade ideológica, de concussão e mais crimes ‘modernos’.

Meu pai, ‘sinhô’ Euclides da Loja de Tecidos São Roque (de quem era devoto), em Cachoeira Grande, distrito de Jacobina, Bahia, negociou nesse lugar por mais de vinte anos tudo informalmente, até a compra de uma ‘fazenda’ com 50 tarefas de terra. O fiado da caderneta era cumprido no tempo da safra de fumo, melancia, feijão-de-arranca, sisal, mandioca, milho, mamona, e não houve quem tomasse prejuízo.

A ‘belle époque‘ à brasileira, notória e fantástica, que deixa marcas e quase não se veem elogios aos cidadãos desse período. Até a Antropologia parece esquecê-la? Uma pena.

Como sempre, imitando o grande Machado de Assis, que assim fazia na sequência de suas obras monumentais (interrompia a narrativa e mandava ver um punhadinho de farinha goela abaixo para apimentar a história), venho concluir a análise sobre o título de hoje.

Exatamente isto: nesse período não se usaria ‘há dez anos atrás’, ‘vou estar atendendo todos em um minuto’ (um minuto para atender mais de 20 na fila do corredor estreito), e outras pérolas. Houve ‘Nóis pode pagá’, fala que representa a original, sem faísca de ostentação, sem fagulha da notoriedade ora reinante.

Mi dá‘, berço de nossa fala, transformada hoje em ‘pra mim dar, para mim falar com ‘us’ senhores, para mim fazer a prova do vestibular’. O que é pior? (Sem comentário; cada um esboce seu viés sob o prisma da cultura moderna.)

Punhado‘ é o que cabe no ‘punho’ da mão frágil, pequenina (uma porção), da mão calejada do cabo da enxada providencial, que trazia a comida ao lar.

Pra mode eu tomá um café‘ não é tão feio assim; equivale a ‘para eu tomar um café’ (para que eu possa tomá-lo), já que se fundamentaria em ‘meu modo de falar’.

Tomar um café encorpado cujos acompanhantes seriam o beiju de tapioca, bom cuscuz feito do milho socado no pilão da casa, como fazia ‘Sinhá Anja’ na casa de meu avô materno, Pai Dindinho, e não havia ‘serviço análogo ao da escravidão’ por várias razões: recebia roupa, comida, um pedaço de terra como prêmio pelo trabalho árduo, uma bezerra da vaca mais bonita, uma leitoa robusta para render, galinhas do terreiro, e, se arranjasse um noivo, a festa de despedida era com zabumba e pífaro, animada por todos, e as ‘prendas’ maiores ainda.

Senhora Ângela, no popular, Sinhá Anja, pois nosso ‘anjo’, por corruptela, vem do Latim ‘angelus’ e ‘angelicus’, que, de angélico, angelical, chega a anjo, anjinho.

Se não havia a mesa farta com beiju, mandioca mansa cozida, batata-doce, farofa gorda de carne-seca, ou carne do sertão, a cuia de farinha era bem-vinda, enquanto não viria o almoço de favas maduras, ou feijão-de-corda verde, abóbora boa cozida, um naco de carne gorda, ou um ‘pedaço de livro’ bem cozido (o bucho de boi, parte chamada por muitos, hoje, de dobradinha; ‘livro’ porque tinha ‘dobras’ como se fossem páginas). A boa  sobremesa viria a ser um pedaço de rapadura, uma ‘tora’ de requeijão, com café torrado e pilado em casa mesmo, meio amargo (porque o açúcar era caro, apesar do engenho um pouco perto). Ou se usava açúcar mascavo, ótima opção, que não era decantada hoje como ‘alimentação natural’ com qualidade de vida (expressão de muitas facetas, empregada de forma duvidosa?).

Para fechar o torpedo, não se entende claramente o que seria ‘fulano tem boa educação’, por que frequentou boas escolas? (a partir do ensino fundamental até a faculdade) ou teria boas maneiras, que nem sempre são vistas? Dão bronca em pessoas simples a todo momento, por qualquer motivo, e estas não são as culpadas por erro em filas, por falha no sistema de operação de banco ou casa lotérica.

Pior: ‘Ele tem boa educação porque frequentou a universidade’ (…). Se frequentar a faculdade já pode antever entrelinhas, o que se pode deduzir de frequentar a universidade? Fez todos os cursos nela existentes?

Boa educação nem sempre seria boa formação, ou vice-versa.

 

João Carlos de Oliveira

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