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Essa cidade fica a cerca de 110 km da Capital. Ele chegou há cerca de 10 dias. A cerca do sítio está pronta. O que significa ‘cerca’?

Toda palavra, por si mesma, conforme o momento, o costume da região ou o contexto, entre outros fatores, pode ter várias acepções. Esse campo semântico é amplo, e todo usuário precisa ficar atento a certas construções frasais ao falar e escrever.

Ampliando um pouco mais esses aspectos, pode-se dizer que estamos diante da polissemia, o fato de uma palavra ter diversos sentidos, sempre de acordo com o emprego na frase.

São palavras polissêmicas, isto é, de uso múltiplo, com que o poeta, por exemplo, pode fazer um verso supimpa, ‘arretado de bom’.

Textos jornalísticos, quando citam a distância de uma cidade a outra, costumam construir frases com ‘cerca de’ (perto de, próximo a, aproximadamente), o que mostra ‘um cálculo aproximado’ de distância entre uma localidade e outra.

Feira de Santana fica a cerca de 110 km da Capital do Estado, Salvador.

Neste momento, é importante o redator ficar ‘com os olhos esbugalhados’ para não usar o verbo haver na 3a. pessoa do singular no presente do indicativo: Feira fica  cerca de 110 km de Salvador (como pode acontecer).

Para indicar distância, a preposição a, como nesse caso, é a ‘dona do pedaço’, e ela não deve ser desprezada. Moro a cerca de 500 m do Centro da Cidade.

Também para o caso de aproximação de tempo, a mesma preposição comanda o aspecto semântico do contexto: O réu foi condenado a cerca de 15 anos de reclusão, pelo que ouvi dizer (comenta um cidadão).

Estamos a cerca de duas horas para chegarmos a Belo Horizonte.

Um artigo regional, analisando o resultado de um júri, comentou que o autor do crime de homicídio foi condenado ‘‘ cerca de 30 anos, (redação inadequada para o caso).

A permanecer essa redação, a frase ficaria correta quanto ao aspecto de dizer que ‘decorreram’ trinta anos após o criminoso ser julgado (sem se saber quantos anos ‘pegou’ de condenação), e a intenção da frase do autor do artigo seria a de comentar que o homicida foi condenado a um período próximo dos trinta anos, o que é bem diferente.

O uso com haver constitui o chamado tempo decorrido, muito usado no dia a dia, em que haver pode ser substituído por existir (que flexiona): Há 30 anos, o réu foi condenado (a 10 anos de cadeia). Existem 30 anos que o réu foi condenado a 10 anos de cadeia (se o redator quiser usar o verbo existir).

Frases costumeiras, corretas, com o uso do verbo haver.

No caso de ser usado no presente, ‘tem que ser’ , cuja pronúncia é idêntica (a), momento em que se confunde com a cerca de.

100 anos, faleceu aquele famoso escritor. uma hora ele chegou da Europa. 20 minutos que estou esperando ser atendido. Estou aqui duas horas em pé, de castigo.

Pense um pouco em suas frases e as compare com essas. Não confunda (forma verbal) com a (preposição, que pode ser usada de várias maneiras). Mas ‘Estamos a 10 km de Belo Horizonte, o que pode demorar, porque o trânsito está lento’.

Se precisarmos passar a forma verbal para o passado, perfeito, imperfeito ou mais-que-perfeito, do indicativo, pode, e seria boa opção conforme a necessidade, mas no aspecto indicativo de tempo decorrido, o verbo não pode ser usado no plural, como muitos ainda redigem.

Nunca use  o verbo haver no plural com a mesma acepção de existir (Haviam pessoas). O verbo existir deve ser flexionado (existem, existiam ou existiram), mas o verbo haver, não.

Existem pessoas dormindo na rua (flexão correta), mas não se pode usar ‘Houvem pessoas no clube’ ou ‘Houveram muitos crimes’, ‘Haviam muitos jovens na festança’, ‘Haverão muitos fatos a serem esclarecidos’.

Analise com paciência: Faz três dias que não o vejo. Há três dias que não o vejo. (Não use: Fazem três dias que não o vejo. Houvem (houveram) muitos dias depois que eu o vi.)

Em tempo: o verbo haver, comumente usado como impessoal, somente na 3a. pessoa do singular, em todos os tempos e modos, é flexionado, praticamente, em dois casos: como verbo auxiliar em tempo composto ou locução verbal, e quando aparece com o sentido de ‘achar por bem, resolver, decidir’ etc.

Eles haviam chegado cedo da viagem (verbo auxiliar). Eu hei de vencer na vida. Havemos de comprar aquele carro (verbo auxiliar em locução verbal, com a mesma conotação de ter). Ainda: Menino, com tanta inteligência, tu hás de ser um grande astro do cinema moderno.

A palavra cerca, a última acepção do título, seria a mais fácil, em que é empregada como substantivo feminino (no singular): obra feita de lascas de bambu, ripas e arame esticado que contorna um espaço defeso e obsta o acesso a ele; cercado (conforme bom dicionário).

‘A cerca da manga onde vai ficar o gado leiteiro está pronta, seu Manuel’, disse o vaqueiro.

Cerca viva: sebe de arbustos ou valado em torno de um terreno para demarcá-lo.

No caminho para o Ribeirão das Pedras, local aprazível, onde se pescam piabas e se pode tomar um banho gostoso, há uma cerca de avelós, planta chamada ‘cega-burro’, bem fechada. Essa cerca, às vezes, é denominada sebe. A sebe é bem imponente, ao pé da ladeira.

Para fechar o artigo de hoje, alguns aspectos da linguagem popular, em geral, a falada.

O verbo amadurecer, forma parassintética, composta de três elementos mórficos: o prefixo a, o radical madur(o) e o sufixo ecer, como se percebe, muito usado, passa a ser também madurecer, forma paralela ou variante gráfica. Um sinônimo pode ser madurar, com a mesma conotação de maturar (carne maturada), e na linguagem bem informal, que ainda perdura, surge a corruptela ‘madrocer’ (Coberta com palhas, a banana madroceu rápido).

  • O substantivo bebê é dado pela Gramática como masculino, que seria sobrecomum, precedido somente pelo artigo o, usado para o menino e a menina: A criança é o bebê mais lindo. Nasceu outro bebê do casal. É uma menina.
  • Acontece, porém, que usuários estão dando uma nova classificação gramatical quanto ao gênero para essa palavra: comum-de-dois-gêneros, em que se alterna o uso dos artigos o e a; o bebê, a bebê, modo não adotado pela Gramática Normativa, até o momento.

O verbo romper, cujos particípios são rompido e roto, em outro momento, ganha uma conotação curiosa: “Mulher de Deus, vai rompendo, criatura, pois estamos atrasados, e eu lhe alcanço, porque você caminha bem devagar” (sic), disse o marido à sua senhora, quando o casal estava de volta após visitar uns amigos.

E mais um modo; romper o lacre, isto é, partir, lacerar, rasgar. Rompeu o lacre da embalagem. Se não houver permissão pra esse ato, ‘romper‘ passa a ser violar, o que consistiria em crime.

O homem campesino costuma, ainda, usar ‘romper’ com o sentido de roçar, abrindo caminho no mato para uma passagem: Vou rompendo com o facão neste mato até a gente chegar do outro lado do riacho. É uma capoeira doida.

Obrigado por ter chegado ao fim do texto.

 

 

João Carlos de Oliveira

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