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‘CAEM REALMENTE AS ESTRELLAS?’, expressão usada num texto de obra enciclopédica, que remonta a um período linguístico chamado ‘Português arcaico’

Trata-se de enciclopédia que foi um fenômeno pelo seu excelente conteúdo, muito usada no passado. Quando estudante do primeiro ciclo, li vários dos seus ‘tomos’, que descansavam na biblioteca simples da escola.

Tenho em mão o tomo 10, comprado há pouco tempo num sebo virtual, em preço módico, por ser obra usada.

O objetivo de hoje é mostrar boa parte da grafia do Português de então, do brasileiro ao lusófono. A redação, porém, ao que se vê, a começar do título, ‘CAEM REALMENTE AS ESTRELLAS?’, pende a um padrão (a pergunta começa com o verbo) que não seria o nosso. Ao fazermos uma pergunta, o comum é começarmos com o sujeito da frase. Para nós seria As estrelas caem realmente? As estrelas, realmente, caem?

Esse texto está em O Livro dos Porquês, seção com assuntos interessantes:

“Esses corpos que vemos cahir do ceu e que designamos com o nome de estrellas cadentes, não são realmente estrellas. Se uma estrella verdadeira cahisse na terra ou, para melhor dizer, se a terra cahisse numa estrella, o calor proveniente d’esta abrasar-nos-hia a todos, muito antes de se dar o choque entre os dois astros. Os corpos que cahem são simplesmente pedras pequenas, calhaus, pedaços de ferro e outros elementos. Algumas vezes chegam até á superficie da terra em forma de pedras ou <meteoritos>, mas, na maioria dos casos, são queimados e reduzidos a pó na sua passagem pela atmosfera terrestre. A maior parte do pó que o ar contem, especialmente nas regiões superiores, é formado de <pó meteorico>, como lhe chamam os homens de sciencia.”

“Só vemos um reduzido numero das <estrellas> que cahem por causa da attracção da terra, pois, embora o phenomeno se repita a cada instante, jámais vemos as que cahem de dia, e não porque deixem de aquecer e ficar brilhantes, mas sim porque os raios do sol impedem que as vejamos.”

“Mas como estes corpos chegam constantemente ao nosso globo e a materia não pode ser anniquilada, muito do que constitue a terra procede das estrellas cadentes ou aerolithos. É esta, sem duvida, a origem do pó que muitas vezes se encontra sobre a neve das mais altas montanhas, onde não é possível attribuir-lhe outra procedencia” (sic).

Usavam ‘porque’, junto, para fazer pergunta (“Porque se propaga a luz com maior velocidade que o som?”). Hoje, por que (separado): Por que houve isso?

Vemos que usam ‘caem’ no título, e ‘cahem’ no texto em si. Como se explica isso? Um lapso, ou o autor do comentário quis dar toque diferente à sua redação: o momento seria ‘atual’ (para ele) e o texto, antigo, razão por que duas grafias para a mesma forma verbal. O terceiro parágrafo registra a grafia ‘sobre’, preposição, de som fechado, que passou a ser ‘sôbre’, com circunflexo, para diferenciar de ‘sobre’, forma verbal, de som aberto (Esperamos que nada sobre no jantar). A preposição voltou à grafia original (Ele falou sobre você).

Reescrevamos o texto usando a grafia dos dias atuais (com destaque para palavras em negrito):

Esses corpos que vemos cair do céu e que designamos com o nome de estrelas cadentes não são realmente estrelas. Se uma estrela verdadeira caísse na Terra ou, para melhor dizer, se a Terra caísse numa estrela, o calor proveniente desta abrasar-nos-ia (nos abrasaria) (a) todos, muito antes de se dar o choque entre os dois astros. Os corpos que caem são, simplesmente, pedras pequenas, calhaus, pedaços de ferro e outros elementos. Algumas vezes, chegam até à superfície da Terra em forma de pedras ou ‘meteoros’, mas, na maioria dos casos, são queimados e reduzidos a pó na sua passagem pela atmosfera terrestre. A maior parte do pó que o ar contém, especialmente, nas regiões superiores, é formado de pó meteórico, como lhe chamam os homens da ciência (os cientistas).

Só vemos um reduzido número das estrelas que caem por causa da atração da Terra, pois, embora o fenômeno se repita a cada instante, jamais vemos as que caem de dia, e não porque deixem de aquecer e ficar brilhantes, mas sim porque os raios do Sol impedem que as vejamos.

Mas como esses corpos chegam, constantemente, ao nosso Globo (Terrestre) e a matéria não pode ser aniquilada, muito do que constitui a Terra procede das estrelas cadentes ou aerólitos. É esta, sem dúvida, a origem do pó que muitas vezes se encontra sobre a neve das mais altas montanhas, onde não é possível atribuir-lhe outra procedência.

Cair, na época, era grafado com h, cahir. Por quê? Cair, em Latim, é cadere, sem h. Se a língua-mãe não influenciou o uso do h, vem à tona a afirmação de que o Português passou pela fase chamada pseudo-ortografia, gerando formas de escrever sem justificativa histórica ou consuetudinária.

Em boa visão gramatical, as seguintes palavras são nomes próprios, razão que nos leva a grafá-las com maiúscula inicial, processo que não foi adotado pelo Português de então, também usado no Brasil: Terra, Sol, Globo (Terrestre).

Palavras que acentuamos graficamente, hoje, nesse período, não recebiam acento gráfico: céu, caísse, superfície, contém (3a. pessoa do singular do verbo conter no presente indicativo; o plural, contêm, que não deve ser confundido com contem, de contar; que eles contem a verdade), meteórico, ciência (que se escrevia sciencia, vinda da grafia scientia, em Latim); número, fenômeno (PH tinha o som de F, como em Pharmakeia, grafia do Grego); jamais (que usavam jámais) dava a entender que esse advérbio, tão popular, teve origem em já-mais; matéria, aerólito, dúvida (s. f., que não deve ser confundido com duvida, forma verbal: ele duvida de tudo), procedência.

O substantivo estrela foi grafado com dois eles: estrella, do Latim stella. Foi comum o uso de letras geminadas; attribuir, anniquilar, e hoje temos narra, passa.

Nossa crase é a fusão de a, preposição, com a, artigo ou pronome, que cria à (com acento grave). Grafaram-na com acento agudo (á), forma que tem aparecido em cartazes e enunciados, o que constitui certa falta de conhecimento linguístico.

A forma verbal constitui, atual, para eles, foi constitue, no presente do indicativo, o que não pode ser confundido com constitua, no presente do subjuntivo.

Esses aspectos mostram, e comprovam, que o idioma passa por constante evolução, podendo haver ainda a mudança do aspecto semântico.

As expressões ‘Se uma estrela verdadeira caísse na Terra ou, para melhor dizer, se a Terra caísse numa estrela’ constituem um trocadilho notável, mas a segunda parte não teria registro ou lógica de ser (vide primeiro parágrafo). No segundo, ‘e não porque deixem de aquecer’ seria o equivalente a ‘deixem de se aquecer’, ou ‘deixem de ficar incandescentes’.

Até mais ver.

João Carlos de Oliveira

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