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“Vamos fazer cada um a ‘sua’ parte para evitar a Covid”, teria dito uma pessoa. Fazer a ‘sua’ ou a ‘nossa’ parte? Ambas são corretas?

Não nos preocupemos com a linguagem; ela varia de um instante para outro e segue caminhos tão diferentes, que achamos que algo não estaria correto.

‘Correto’ como, se não vimos o que costumamos escrever ou falar? A linguagem é pré-determinada?

É e não é. Determinada quando a Gramática Normativa diz que o plural de cidadão é cidadãos, e não cidadões; quando, pelo bom-senso, o plural de vale-compra e vale-brinde são, respectivamente, vales-compra (vales-compras) e vales-brinde (vales-brindes), e não vale-compras e vale-brindes, como se pode encontrar. Vale, nos dois compostos, não se trata de forma verbal, do verbo valer, mas de um substantivo (o vale), uma nota, uma anotação. Um dicionário diz que vale, que não se trata de depressão de terreno, é ‘um documento (sem forma legal) que comprova uma dívida, um empréstimo, um adiantamento por conta do salário ou retirada eventual de numerário em caixa’.

Todos sabemos que podemos fazer uma pequena compra e, na base da confiança, conforme o local e a relação de amizade entre as pessoas (comerciante ou empresário e comprador), podemos assinar o vale para posterior pagamento.

Todos temos conhecimento, também, de que o funcionário pode pedir ao patrão ‘um vale’ (de valor pequeno) por causa de uma emergência, a ser descontado no dia do pagamento do mês (em empresas privadas).

Esse mesmo processo existe em empresas públicas quando é feito o chamado ‘empréstimo consignado’, que trata de um ‘adiantamento’ (portanto, um vale) a ser descontado no pagamento (ou na ‘aposentadura’ do cidadão) no final do mês. O curioso é que foi criado o sistema do ‘vale contínuo’ (de toda a vida!), que fica descontando por alguns anos (60 meses correspondem a 5 anos) e acabam minando a merreca que seu fulano recebe como sua aposentadoria (o benefício de seus anos de luta), que alguém chega a pensar que o Poder seria ‘bonzinho’, e alguns ainda o chamam de aposentadura, tão dura, tão insegura, que cria a clausura, a prisão (enclausurou o ordenado, tão chocho que é).

Clausura, a prisão, nada tem a ver com ‘cláusula’, a norma, o item, a regra. Como essas duas se parecem! Dois parônimos de arrebentar os tímpanos, se não tivermos um bom domínio linguístico.

Assim, é a linguagem, que muda de um instante para outro, como tomamos um café ou bebemos a água fresca da cacimba, e outro toma uma beer bem gelada. Cara, tomei uma caracu bem gelada. Mesmo amarga, é ‘uma doçura’, e o acompanhante foram umas piabinhas fritas, chamadas por uns de lambarizinhos. Questão de costumes, sabendo que uns condenam e outros aplaudem certos hábitos.

Encompridando mais o comentário, na palavra composta vale-brinde, o termo brinde qualifica vale, por isso, o plural pode ter duas opções: os vales-brinde, como os navios-escola, as bananas-maçã, ou simplesmente flexionar os dois substantivos ao mesmo tempos: os vales-brindes, os navios-escolas, as bananas-maçãs. O critério da flexão somente do primeiro elemento fica mais ‘em conta’, como se faz pombos-correio? Mais comum encontrarmos pombos-correios.

Essa é a linguagem que vivemos, mutável como nossas ideias. Se perguntar não ofende, como dizem os vividos cidadãos, perguntamos: são os costumes que mudam o comportamento (os hábitos) das pessoas ou são os hábitos das pessoas (o comportamento) que mudam os costumes?

A cada dia, a sociedade perde um costume e ganha outro; o velho se torna moderno; o que seria atual se torna antiquado ou cafona. Se o famoso usar chapéu de palha em um show, haja tanta palha de ouricuri, ou de outra palmeira, para se fazerem novos chapéus, porque o estoque atual, que estaria encalhado, vai sumir num piscar de olhos. Nesse caso, a mudança de costume seria uma boa opção para o comércio popular dos chapéus de palha.

Demorei, mas cheguei: a frase da introdução é múltipla, e podemos seguir o critério do núcleo do sujeito (nós): vamos fazer (…) a nossa parte, ou seguir o segundo item da expressão, cada um (de nós) faz a sua parte.

As duas possibilidades estão de acordo com a flexão do idioma, mesmo que a Gramática Normativa seja omissa, e são usadas pelo bom ouvido: vamos fazer cada um de nós a nossa parte, vamos fazer cada um de nós a sua parte.

Qual você usa? Ou ainda não teria parado para analisar esse hábito (inconsciente?) da nossa linguagem, em especial, a falada?

Ambas ocorrem da mesma forma que usamos ‘um bando de pássaros voou para o alto das árvores, um bando de pássaros voaram para o alto das árvores’.

Isso serve para nos dizer que não podemos de, antemão, condenar a linguagem de certo falante ou escrevente; precisamos buscar um momento de reflexão e obter a resposta, que pode parecer enviesada. Com o tempo, nós ‘se acostuma’ com ela, mas nem sempre ‘nós nos acostumamos’ com certa regra gramatical, como o uso desta: “Podem haver” (que vem aparecendo em artigos de bons ‘redatores’ de sites regionais).

Haver, como impessoal, não flexiona em outras pessoas; apenas na terceira-pessoa do singular: Há um animal na pista. Há animais na pista. Houve muita gente na festa. Houve muitas pessoas na festa.

Se for usado com um verbo auxiliar (poder, dever etc.), a regra continua a mesma: se o principal não flexiona além dessa terceira-pessoa, o auxiliar também não: Pode haver um animal na pista. Pode haver animais na pista.

Trata-se de solecismo usar ‘Houveram muitas pessoas na festa’, e se a frase pesa por haver estar no passado, da mesma forma, não pode ir ao plural se fizer parte de locução verbal: pode haver, deve haver, e a popular ‘tem que haver’ (todas bem usadas no dia a dia).

Se fica condenada para a linguagem culta ‘Nós é muito simples’ ou ‘Os cidadões não seguem a regra da Constituição’, assim também não se deve usar ‘Podem haver mais pessoas soterradas nos escombros’, frase usada em se falando de catástrofes naturais, como as enchentes aqui no Extremo-Sul da Bahia.

Diz a norma gramatical: solecismo é o ‘erro’ que recai sobre a construção da frase, desvirtuando a concordância, a regência ou a colocação de palavras.

Por conselho da norma em si, não use ‘Fazem três dias, Haviam diversas pessoas, O pessoal já chegaram, Vende-se casas, Falta 10 minutos, Chegou muitos produtos’, portanto, ‘Podem haver pessoas soterradas’ constitui o mesmo lapso.

Faz três dias, Havia diversas pessoas, O pessoal já chegou, Vendem-se casas, Faltam 10 minutos, Chegaram muitos produtos, e ‘Pode haver pessoas soterradas’.

Meus cumprimentos por ter-me tolerado até aqui.

João Carlos de Oliveira

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